Blakeney, Sally. “O conto de fadas dourado”. The Australian, 7 de novembro de 1998.

É uma coisa de criança que os adultos adoram – e isso reuniu um gênio morto com uma mãe solteira. Escritores de livros INFANTIS, pensamos, deveriam saber o seu lugar. Seguramente enfiados em prateleiras arrumadas para “jovens” e “de 8 a 13 anos” é onde queremos que eles estejam. E não lá em cima, coroando no topo da lista de livros mais vendidos para adultos.

Então, justo quando pensamos que C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien e Roald Dahl estavam seguramente adormecidos, aí vem J.K. Rowling com uma biografia do tipo “de repente rica” que deixa os Dons de Oxford e pilotos de combate no escuro. Depois de monopolizar as listas de livros em brochura com Harry Potter e a Pedra Filosofal, Joanne Rowling, vendeu mais livros este ano do que autores como Jeffrey Archer e John Grisham quando seu segundo romance, agora em capa dura, Harry Potter e a Câmara Secreta, foi o mais vendido por quatro semanas. Rowling também negociou os direitos autorais para o filme.

É coisa de contos de fadas. Em 1994, a ex-professora chega a Edimburgo com sua filha de quatro meses de idade, uma maleta (praticamente cheia de histórias sobre Harry Potter) e dinheiro suficiente para alugar um apartamento ruim. Seu casamento em Portugal acabara, ela não tinha roupas quentes e escrever em cafés – com seu bebê dormindo ao seu lado – era tudo que lhe restava de sua antiga vida. Ela enviou o manuscrito (re-digitado, ela não tinha dinheiro para fazer cópias), ainda sonhando, como ela fazia quando tinha cinco anos de idade, rabiscando sua primeira história na Floresta de Dean, na fronteira da Inglaterra com Gales.

Então, como que num passe de mágica, a mãe solteira vivendo com auxílio-desemprego se vê como uma celebridade de primeira página. Surge um pagamento adiantado, inédito, de £100.000 (mais de 271.370 dólares) pelo seu primeiro romance. Ela assina um contrato para escrever mais seis livros da série. Hollywood se encanta. A Warner Brothers compra os direitos de filme para o Mundo dos Bruxos de Harry Potter. E, fascinados, os editores reimprimem Harry Potter e a Pedra Filosofal com duas capas diferentes; uma para crianças entre 8 e 13 anos e outra para adultos que prefeririam não serem vistos lendo livros infantis.

“Na opinião de algumas pessoas, livros infanto-juvenis valem menos do que livros para adultos,” diz Rowling. Ela está recuperando o fôlego – como se isso fosse possível para a mãe de uma criança de cinco anos – em sua nova casa em Edimburgo depois de um tour de 11 dias por cinco cidades norte-americanas. “As pessoas freqüentemente me perguntam: ‘Quando você vai escrever um livro para adultos?’ Se um livro é atrativo, ele vai ser atrativo para todo mundo”.

Claro, um leitor como o falecido C. S. Lewis (cujo centenário seria neste mês) teria lido Harry Potter, não importa a aparência da capa. “A organizada divisão de livros por grupos de idade, tão valorizada pelos editores, tem uma relação bastante incompleta com os hábitos de qualquer leitor de verdade”, foi o que o futuro professor de Inglês Medieval e Renascentista em Cambridge, sempre realista e subversivo, disse audaciosamente em uma conferência de bibliotecários em 1952. “Aqueles de nós culpados por lermos livros infanto-juvenis quando velhos, foram culpados, quando crianças, por ler livros muito velhos para nossa idade. Nenhum leitor que se preze segue, à risca, um cronograma”.

O Harry Potter de Rowling é um órfão. Aos 11 anos ele leva uma vida de Cinderela com seus horríveis parentes, os Dursleys, e seu primo monstruosamente mimado, Duda. Esse mundo Roald Dahl de maldade suburbana é destruído quando o gigante Hagrid, dono de uma motocicleta voadora, chega para revelar o segredo “sombrio” de Harry. Ele não é um “trouxa” como os Dursleys, mas o filho de uma bruxa e de um bruxo. Harry tem que aprender a profissão da família na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Aqui há um pouquinho da visão de Enid Blyton para a ofegante aventura com perspicácia. Vida como em um internato, colarinho desabotoado, um clima de ironia compartilhado com fantasmas como Nick Quase Sem Cabeça e a Murta Que Geme. (Rowling adora nomes e os rouba sem nenhuma vergonha de velhas palavras em inglês, placas de ruas e santos medievais). Corujas entregam cartas. Varinhas são objetos obrigatórios. Ratos são permitidos como bichos de estimação. Há aulas de poções, artes das trevas – sem falar nas aulas de vôo. Casas opostas animam o excitante jogo de quatro bolas, Quadribol, onde os jogadores ficam montados em vassouras.

Hoje em dia, pessoas com boas intenções dão livros de fantasia para que Rowling os leia. Mas ela prefere Jane Austen e Roddy Doyle. “Fantasia não é o meu gênero predileto. Embora eu adore C. S. Lewis, eu tenho um problema com aqueles que o imitam”. Aos 33 anos, Rowling ainda relê As Crônicas de Nárnia, famosas por O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa (seu preferido é A Viagem do Peregrino da Alvorada), junto com os outros preferidos de sua infância, E. Nesbit, Paul Gallico e Noel Streatfield. “Eu tento fazer o mesmo que eles no quesito de pegar uma boa história e contá-la da melhor maneira possível”, ela diz. “Não havia nada de descuidado com o jeito que eles escreviam”.

Rowling, que estudou Francês e Literatura Clássica na Universidade de Exeter (“Meus pais pensaram que eu seria uma secretária bilíngüe”), chama Lewis de gênio. “Ele era um homem muito instruído e criou uma mitologia própria e muito rica”. Convertido ao Cristianismo aos 30 anos, Lewis era um mestre da linguagem, cujo poder pacato e persuasivo ainda se espalha através do tempo e pelas nacionalidades para cativar a mente e o coração de seus leitores. Seus livros, hoje, (relançados na Austrália este mês pela HarperCollins) estão disponíveis em 29 línguas, incluindo finlandês e havaiano. Apenas recentemente, o milionário de Detroit, Thomas Monaghan, decidiu mudar sua vida depois de ter lido Cristianismo Puro e Simples de C. S. Lewis. Ele vendeu sua rede de pizzarias por 1 bilhão de dólares e está investindo em causas mais dignas.

Lewis teceu suas histórias infantis a partir de sua leitura onívora. Seus mundos de Nárnia, Cair Paravel, Calormânia, Tashbaan e Arquelândia saíram de histórias contadas por nossos ancestrais ao redor de fogueiras fumarentas antes que os homens pudessem escrever. Aos 12 anos, ele leu contos de fadas e lendas, principalmente mitos escandinavos. Aos 16, ele leu A Ilíada e A Odisséia e descobriu os dois escritores de histórias infantis que se tornariam a maior influência em seu trabalho, E. Nesbit e George MacDonald. Considerado um dos homens mais lidos de seu tempo, ele deixou uma biblioteca com 3.000 exemplares.

Enquanto Rowling senta em seu escritório em frente a seu novo laptop (“Eu ainda escrevo de verdade à mão em cafés”, ela confessa), é difícil imaginar o impacto do primeiro livro publicado da série sobre Nárnia, O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, no seu público de 1950. Naquele tempo, Enid Blyton era a rainha dos livros infantis. O Realismo comandava enquanto a fantasia definhava na creche com Noddy de A Cidade dos Brinquedos. Subitamente, a história de quatro crianças que após fugirem de Londres, descobrem o mágico mundo de Nárnia quando elas atravessam a parte de trás de um guarda-roupa, estava sendo lida por todos. De repente, Lewis era um nome familiar graças às suas transmissões radiofônicas sobre cristianismo e um esquisito e desenfreado best-seller, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz.

É claro que o livro não agradou a todos. Tolkien, professor universitário de língua Inglesa e literatura em Oxford (Lewis era professor na Magdalen College antes de sua admissão em Cambridge), odiou O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa. Ele achou que foram coisas juntadas ao acaso, não um mundo coerente e imaginativo. Os dois leram as obras um do outro na medida em que elas foram sendo lançadas. Lewis, tipicamente, foi mais bondoso para com os trabalhos de Tolkien em seu livro infanto-juvenil, a épica narrativa de Frodo, o Hobbit. O livro de Tolkien começava com as histórias que ele contava para seus filhos. Lewis era um solteirão (ele não se casou até os 60 anos, e quando o fez, escolheu – como os que já assistiram ao filme Terra das Sombras sabem – uma mulher americana à beira da morte devido a um câncer). Ele achou que uma história para crianças era a melhor forma de dizer o que ele queria dizer.

Lewis estava (pelo menos no começo) inconscientemente evangelizando através da imaginação. Ele afirmava que suas fábulas saíam de imagens de “um fauno carregando um guarda-chuva, uma rainha em um trenó, um magnífico leão”; o elemento cristão da história “se desenvolvendo por conta própria”. “Ele estava tentando provar seu ponto de vista e o fez brilhantemente”, diz Rowling, acrescentando que, embora seus livros não possuam uma mensagem, ela os considera morais. (“São as nossas escolhas, Harry, que revelam quem realmente somos, muito mais do que as nossas habilidades”, diz o diretor Professor Alvo Dumbledore depois de um encontro particularmente desagradável com um monstro nas entranhas da escola). Assim como Lewis, o livro de Rowling começou com um quadro visual que se desenvolveu em sua imaginação enquanto ela estava a bordo de um trem atrasado. “Eu vi Harry; ele apareceu incrivelmente formado, completamente. Ele era um garoto que não sabia que era um bruxo e fora inscrito na escola de magia desde seu nascimento. Eu fiquei horas sentada, pensando como uma escola bruxa seria”.

Rowling, que atualmente está trabalhando no quarto livro da série (publicado aqui pela Allen & Unwin) não hesita ao apontar as diferenças entre sua narrativa e a de Lewis. “Para começar, eu acho que ele era um gênio e eu não sou. O mundo dele era um lugar diferente que te leva para outra dimensão. Para mim, nos livros de Harry não há um mundo diferente, é simplesmente um mundo que não podemos ver: somos trouxas, está bem debaixo de nossos narizes”.

Ela vai esperar um ou dois anos para apresentar Harry Potter a sua filha (muitas coisas poderiam ser assustadoras para uma criança de 5 anos), e nos próximos livros haverá mortes – assim como houve nos livros de Lewis. Mas quando você é um contador de histórias e um leitor, não há fronteiras, como Lewis disse ao seu público, anos atrás: “Quando eu tinha dez anos, eu lia contos de fadas escondido e eu teria vergonha se me encontrassem lendo-os. Agora que tenho 50 anos, eu os leio abertamente. Quando me tornei um homem, coloquei de lado as coisas infantis, incluindo o medo de infantilidade e o desejo de ser muito adulto”.

Harry Potter e a Pedra Filosofal, 223 páginas, por $19.95. Harry Potter e a Câmara Secreta, Bloomsbury, 251 páginas, por $19.95. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa de C. S. Lewis, HarperCollins, 173 páginas, por $12.95 (também disponível como livro de figuras, por $19.95).

(c) Nationwide News Proprietary Ltd, 1998.

Traduzido por: Pablo Júnio em 29/01/2009.
Revisado por: Fabianne de Freitas em 10/02/2009.
Postado por: Vítor Werle em 10/02/2009.
Entrevista original no Accio Quote aqui.