Taylor, Charles. “A.S. Byatt e o cálice da aspereza”. Salon, 8 de julho de 2003.

A recente resenha da autora no New York Times mostra que ela não entende por que muitos de nós amamos Harry Potter. Deve ser porque é muito divertido.

Quando um livro vende 5 milhões de exemplares em capa dura em seu primeiro dia, é inevitável que haja alguém que o abomine e diga que o que estamos vendo é meramente um fenômeno popular que não tem qualquer relação com a literatura. O admirado fanfarrão Harold Bloom, em seu disfarce auto-concedido de guardião do cânon, fez as honras após o quarto livro de Potter, Harry Potter e o Cálice de Fogo, nos contando que a leitura deveria nos enriquecer (sem mesmo sair por aí declarando se ela deveria nos entreter) e logo depois, lançando sua própria coleção de literatura infantil que, em seu ponto de vista, fazia exatamente isso. Prosseguindo na cronologia, apenas duas semanas depois do lançamento do novo Harry Potter, foi A.S. Byatt, aparentemente tendo feito as pazes com o trabalho dentário de Martin Amis, quem tomou o posto contra os livros de J.K. Rowling em uma crítica do New York Times.

O argumento de Byatt é exatamente o que você poderia esperar de alguém carregando o manto da alta cultura. Para mostrar que não é uma completa estraga-prazeres, Byatt aceita que os livros de Rowling são divertidos e revelam “um instinto exato da psicologia infantil”. Para responder à maior pergunta do que explica o enorme sucesso com adultos e crianças (hmm, porque J.K. Rowling é uma mestra da narrativa?), Byatt decide que os livros representam “conforto” para seus leitores, incorporando a noção freudiana de “romance familiar” (encontrar a família substituta, onde somos apreciados pelo que somos) e a chance de voltar para um mundo seguro onde o bem e o mal são facilmente identificados e nos sentimos controladores do imprevisível.

Byatt pode ter um argumento cultural válido – um argumento minúsculo – sobre os impulsos que nos levam a dar confiança ao lixo popular ao invés das perturbadoras complexidades da arte. O problema é que o seu argumento não tem nada a ver com a experiência que qualquer um que eu conheça teve ao ler os livros de Harry Potter. Talvez partindo da ideia de que qualquer coisa positiva escrita sobre o trabalho de J.K. Rowling é pouco mais que publicidade ou uma evidência dos reduzidos padrões culturais, Byatt não gasta nenhuma sílaba no assunto sobre o qual tem sido amplamente escrito e discutido com Cálice de Fogo e o novo Ordem da Fênix: a crescente obscuridade nos livros. Rowling concebeu o ciclo de sete livros como um percurso pelo crescimento de Harry da infância até o fim da adolescência. E os livros têm prosseguido, os perigos que ele enfrenta não só cresceram mas, como acontece com a idade, se tornam menos fáceis de ser ignorados, causando feridas físicas e psicológicas que não são fáceis de curar. No clímax de Cálice de Fogo, Harry presencia a morte de um colega de classe, um evento que ainda lhe dá pesadelos no novo livro. Tendo sido testemunha da morte, ele agora pode ver coisas, visões nem um pouco reconfortantes, que seus colegas poupados de experimentar a morte não conseguem. E, cada vez mais, ele descobre que o poder que lhe permitiu sobreviver à tentativa de assassinato de Voldemort, feita quando Harry era criança, conecta seu cérebro com o do Lorde das Trevas, o fazendo sentir que sua bondade é sempre posta em cheque por este acesso ao lado obscuro.

Em Ordem da Fênix, Harry vivencia a morte de outro personagem, alguém muito próximo a ele, e a alienação crescente de seus melhores amigos, Rony e Hermione, que não suportam as responsabilidades que ele tem. Os leitores jovens que tinham a mesma idade de Harry quando a série começou podem estar crescendo com ele. Mas um jovem grupo de leitores que estão começando a série só agora pode achar os últimos livros muito chatos para eles (da mesma forma que alguns telespectadores jovens de Buffy, a Caça-Vampiros abandonaram a série quando ela começou a lidar com as complicações do início da vida adulta). Mas mesmo se, até esse momento, tivessem lido apenas Harry Potter e a Pedra Filosofal, se encontrarão confrontados pela perda. Lembre-se, este é um personagem cujos pais são assassinados quando ele é um bebê, e que está sob contínua ameaça de morte do assassino de seus pais. Esse livro contém a cena devastadora na qual Harry encontra um espelho que revela o mais puro desejo do coração e, olhando para a imagem, ele se vê feliz sorrindo com os pais que nunca conheceu, uma visão que dura apenas enquanto ele olha pelo espelho, e uma metáfora de como nossos momentos de verdadeira felicidade são fugazes. Essa é a ideia de Byatt de segurança?

É claro que há coisas reconfortantes nos livros de Harry Potter. Desafio Byatt a não encontrar as mesmas qualidades em toda a boa literatura infantil. Ela confundiu conforto com escapar da realidade. As grandes fantasias não só refletem o mundo real, como todos os confortos que oferecem vêm com um preço. As crianças sofrem perdas nas grandes obras da literatura infantil, e descobrem que tem a força para lidar com elas. Elas não se esquecem de suas perdas, mas aprendem a viver com elas. E isso é tão verdadeiro para as jovens heroínas em O Jardim Secreto e A Princesinha de Frances Hodgson Burnett, ou para os garotos de The Black Stallion, Walter Farley, e The Yearling, Marjorie Kinnan Rawlings, quanto para Harry Potter.

Da questão do conforto e segurança, Byatt muda para um terreno ainda mais instável, se queixando de que a forma de magia de Rowling é barata. “Os bruxos, de Ursula K. Le Guin, habitam um mundo antropologicamente coerente onde a magia realmente age como uma força”, escreve Byatt. “A varinha mágica da Sra. Rowling não tem nada em comum com essas antigas palavras. É pequena, só pode ser usada nos terrenos da escola e só é perigosa porque ela diz que é”. Perdão? Qualquer coisa em qualquer romance existe simplesmente porque o autor diz que existe. Isso não impede o autor de tornar o romance dramaticamente plausível, e se o que Byatt quer dizer é que, para ela, os mundos de Le Guin são mágicos e os de Rowling não são, então esta é uma verdadeira questão de gosto. Mas indicar que há algum padrão objetivo dividindo livros nos quais a “magia realmente age como uma força” daqueles onde a magia é uma invenção sem valor é besteira, e Byatt sabe disso.

E Byatt ainda cambaleia mais, afirmando que “Rowling fala a uma geração adulta que não conheceu o mistério, ou não se importa com ele. São moradores de selvas urbanas e não das reais”. Bem, se a minha edição da Modern Library da biografia de Byatt, “Possessão”, estiver correta, o mais próximo que ela já chegou da “verdadeira selva” foi ser filha de um advogado e uma professora em Yorkshire. A menos que estejam faltando as páginas de um episódio no qual, assim como Jane, Byatt se pendura nos cipós selvagens, seria justo perguntar como uma vida passada num internato na cidade britânica de York, e depois em Cambridge, Bryn Mawr e Oxford antes de se firmar em Londres, deu a ela a experiência da selva verdadeira.

Mas é aí que o ponto crucial do argumento de Byatt se torna simples, e ela se afoga em sua presunção de forma extraordinária. Adultos contemporâneos amam Harry Potter, ela nos diz, porque “não têm habilidades para separar a magia barata da verdadeira, porque, quando crianças, eles investiram na magia barata com a imaginação que tinham”. Em outras palavras, somos estúpidos demais para saber a diferença entre diamantes e pedras em forma de cubo. Byatt nos chama de pobres adultos incultos e diz que amamos Harry porque somos “pessoas cujas vidas imaginativas estão presas a desenhos animados, e aos exagerados mundos paralelos (excitantes, mas não ameaçadores) das novelas, reality shows e fofocas de celebridades”. Que tal isso para nos pôr em nosso devido lugar?

Está claro que estamos aqui lidando com uma coroinha do templo da alta cultura fechando as portas à medida que as massas ignorantes que amam a cultura popular vão bater. Apesar de ter aversão ao velho conto do vigário de acusar os escritores e críticos que não gostam das obras de arte populares por terem inveja, no caso de Byatt pode ser verdade. Lembrem-se, é a mesma escritora que comandou uma vaia altamente divulgada há alguns anos, quando Martin Amis recebeu um adiantamento lucrativo contra livros futuros. É simplesmente humano que escritores, produtores ou músicos se sintam desprezados ou mesmo desdenhosos quando o que eles consideram um trabalho bom e sério está sendo ignorado por algum artefato popular. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, se você escolher a vida de escritor, vai poder ficar em paz com a possibilidade de que, de qualquer forma, não apreciará o espetacular sucesso comercial. Byatt entende disso melhor do que muitos, desfrutando de uma pitada de fama, maior do que seu senso de respeito, e a distinção de ser uma das poucas que pode viver da ficção literária. Mas o sucesso na escala do de J.K. Rowling é, claramente, irritante para Byatt.

E não está sozinha. Na época em que Harry Potter e o Cálice de Fogo foi publicado, há três anos atrás, o New York Times Book Review, supostamente em resposta às queixas de editores e agentes literários, criou uma listagem separada para os mais vendidos infantis e pôs os livros de Harry Potter ali. Os argumentos produzidos em favor da mudança afirmaram estar preocupados com a justiça. Um lugar na lista de mais vendidos do Times poderia significar um grande sucesso para o autor, continuavam os argumentos, e com Rowling ameaçando ocupar quatro posições na lista, alguns livros simplesmente desapareciam do top 15. Difícil. (Quando os Beatles ocupavam cinco posições no top 10, eles não foram separados em uma lista britânica para dar espaço aos Beach Boys).

Não há dúvidas de que os editores e agentes usam a lista do Times para vender livros. Mas a promoção não deve ser levada em conta pelas pessoas que organizam a lista de mais vendidos. Ou a tal lista mostra quais são os best-sellers no país, ou não. E quando um romance infantil vende 5 milhões de exemplares em suas primeiras 24 horas de venda, claramente não são apenas as crianças que o estão lendo, e é uma mentira deslavada fingir que qualquer outro livro é o número 1 dos mais vendidos. E o exílio de Rowling deu espaço para outros romancistas menos conhecidos? É claro que não. De vez em quando, um sucesso inesperado como The Lovely Bones de Alice Sebold ganha uma posição. Mas a exclusão dos livros de Rowling significa que a lista de mais vendidos desta semana tem mais espaço para famosos como Clive Cussler, John Grisham, Nicholas Sparks e o time renascido de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins.

Nada merece nosso respeito (ou desdém) simplesmente porque é popular, não importa o quanto for. Mas críticos literários quase nunca se preocupam com o que as pessoas realmente lêem. Às vezes, existem boas razões para isso. Se confrontado com a diminuição do espaço para todos os tipos de críticas, eu preferiria um romance sem publicidade para dar cobertura de um novo escritor qualquer do que o mais novo “causador de hérnia” de Tom Clancy. Mas os romancistas literários que se aborrecem com a ficção popular nunca param de pensar no que os leitores estão se interessando a não ser, como Byatt, para colocar a culpa na estupidez das massas. Seria desonesto dizer que a ficção literária tem abandonado a narrativa e o personagem como um todo. De qualquer forma, a ficção literária parece ter tão pouca ligação com as razões pelas quais as pessoas começam a ler – e continuam lendo – que tem que suportar ao menos um pouco da culpa por sua própria marginalização.

Você imaginaria que Byatt, cujo livro mais famoso, Possessão, é uma leitura grossa e proporcional que oferece os prazeres da narrativa e do personagem, entenderia isso. Mas talvez o livro ofereça uma dica do porque ela não entenda. Não conheço ninguém que ame Possessão que não tenha passado batido pelos poemas vitorianos interpolados. (Criticando o romance com entusiasmo para o New York Review of Books, Diane Johnson satirizou que o ventriloquismo da poesia épica vitoriana de Byatt atestou o velho provérbio de que “ninguém gosta de épicos”). As pessoas devoravam as histórias paralelas dos dois pares de amantes, mas alguns capítulos depois, algum poema maldito sobre fadas ou algo assim surgia no caminho. Byatt admite que concebeu o livro como, entre outras coisas, um romance com o gosto por Georgette Heyer, sua escritora favorita na infância, e como uma paródia de outra escritora, Margery Allingham (cujos livros, e ela parece não entender, já são paródias de mistérios em casas do interior da Inglaterra). “Possessão” é uma demonstração ressonante de que um romance contemporâneo pode ser literário e ainda assim uma leitura ótima e interessante (e não uma distinção que teria sempre acontecido aos grandes romancistas do século 19). Mas talvez, para Byatt, estes prazeres básicos, não importando o quanto sua escrita fosse variada e rica, não é o bastante.

Colocando tudo o que é barato e falsificado na cultura contemporânea nas costas de Rowling, Byatt parece estar argumentando não só contra o que vê como a futilidade inevitável da cultura popular, mas também contra os prazeres básicos que atraem as pessoas aos livros. E é por que, para Byatt, seja como acadêmica ou como romancista, o advento dos estudos culturais seguindo seu caminho para os salões sagrados dos acadêmicos é uma traição. Ela pode admitir ter amado os romances de Regency de Georgette Reyer quando criança, mas agora, meu Deus, ela viveu para ver as pessoas realmente criticar Heyer. Que Deus nos proteja! O que Byatt não percebe é que o excesso de estudos culturais (e ela está certa de que alguns traem uma preocupação inadequada com as besteiras) foi uma reação direta aos acadêmicos que consideravam qualquer estudo da cultura popular inapropriado ao nível universitário. E é válido lembrar que, uma vez ou outra, tal influência teria impedido o estudo de Shakespeare, Dickens, Mozart ou Griffith (ou qualquer filme, nesse sentido).

Não é às distinções entre as culturas alta e popular que me oponho. É a apresentação proposta pelos guardiões da alta cultura, como Byatt, que parece tão grosseira, tão pronta para fazer com que a apreciação da alta cultura pareça um dever tão enfadonho como quando éramos crianças na escola. “A única razão pela qual as pessoas lêem é o prazer”, disse Leslie Fiedler uma vez. E vou terminar oferecendo outra citação de Fiedler que deve manter Byatt, e os outros guardiões da chama cultural, acordados por várias noites. Durante uma entrevista ao Salon poucas semanas antes de morrer, Fiedler contou uma história sobre quando irritou um grupo de acadêmicos ao anunciar que quando todos estivessem mortos e esquecidos, as pessoas ainda estariam lendo Stephen King. A dura realidade que A.S. Byatt e Harold Bloom ainda têm que encarar é que, enquanto eles foram reduzidos a notas de rodapés, as pessoas ainda estarão lendo e aproveitando os livros de Harry Potter. E em algum lugar, J.K. Rowling, na companhia de Dumas, Conan Doyle e os outros escritores “não-literários” que virão, estará rindo.

Fonte: http://dir.salon.com/story/books/feature/2003/07/08/byatt_rowling/

Revisado por: Fabianne de Freitas em 06/05/2009.
Postado por: Ohanna S. Bolfe em 18/05/2009.
Entrevista original no Accio Quote aqui.