“Harry Potter e Eu” (Especial de Natal da BBC, versão britânica). BBC, 28 de dezembro de 2001.

*Transcrito por ‘Marvelous Marvolo’ e Jimmi Thøgersen.

Esse programa de televisão foi apresentado pela BBC no Reino Unido e no Canadá, e pelo canal de televisão por assinatura A&E nos Estados Unidos. A edição e os narradores são diferentes. Esta transcrição é da versão britânica, as seções do programa não apresentados pela versão estadunidense estão em negrito.

STEPHEN FRY [SF], narrador britânico da versão em áudio dos livros: [Excerto de PF:] “Ele vai ser famoso, uma lenda! Eu não me surpreenderia se o dia de hoje ficasse conhecido no futuro como o dia de Harry Potter. Vão escrever livros sobre Harry. Todas as crianças do nosso mundo vão conhecer o nome dele!”

NARRADOR [NAR]: Quando J.K. Rowling escreveu essas palavras nas primeiras páginas de Harry Potter e a Pedra Filosofal, ela nem em seus mais loucos sonhos poderia ter imaginado que se tornariam realidade. Harry Potter tornou-se o maior sucesso editorial que o mundo já viu. Desde 1997, mais de 135 milhões de cópias foram vendidas em mais de 48 idiomas – só a Bíblia tem mais traduções. A cada trinta segundos alguém, em algum lugar do mundo, começa a ler uma história de Harry Potter.

JO ROWLING [J.K.R.]: Eu seria clinicamente insana se esperasse o que aconteceu. Quem poderia ter previsto isto? Ninguém imaginava. Nem eu.

NAR: Há poucos anos, J.K. Rowling estava falida e desempregada. Uma mãe solteira que passava as tardes escrevendo em cafés de Edimburgo enquanto sua filha dormia. Hoje ela é famosa e rica – a escritora infantil mais famosa do mundo. Escreveu quatro best sellers internacionais, os filmes de Harry Potter são sucessos de bilheteria e milhões de fãs estão desesperados pelo próximo livro de aventuras do menino bruxo. Mas é a história de J.K. Rowling que mais impressiona. Somente agora ela concordou em contá-la em suas próprias palavras.

J.K.R.: Escreveram tolices sobre mim. Não eram necessariamente maldosas, mas exageraram e distorceram coisas. Então pensei que, talvez, tivesse chegado o momento de contar como aconteceu. Sinceramente. Então posso, pelo menos, deitar à noite e pensar “A verdade está aí. Podem aceitar ou não”.

NAR: A chegada de Harry à soleira da porta dos Dursley no primeiro livro é o começo de uma mágica e épica jornada. Ele cresce pensando que é um menino comum até descobrir que, no mundo da magia, seu nome é uma lenda e que está destinado a estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. É então que as aventuras realmente começam, que ele e seus colegas, Hermione e Rony enfrentam as forças ocultas da bruxaria. Uma história que J.K. Rowling planejou meticulosamente para contar em sete livros: um para cada ano letivo. Foi uma jornada que começou lá em 1990.

J.K.R.: Eu ia de trem, de Manchester para Londres, e pensava em coisas diversas quando a idéia surgiu do nada. Pude ver Harry claramente, um menino pequeno e magricela. E foi um ímpeto físico de emoção. Nunca senti tanta emoção com algo relacionado à escrita. Nunca uma idéia me deu uma resposta tão física. Então, procurei na bolsa uma caneta, lápis, qualquer coisa, eu não tinha nem delineador. Tive de ficar sentada pensando. E, durante quatro horas – o trem estava atrasado – todas as idéias borbulharam na minha cabeça.

SF: [Excerto de PF: descrição de Harry acompanhando a exibição de imagens do Harry com Edwiges (não são imagens do filme PF)]

J.K.R. [no trem]: Não sei descrever a emoção para alguém que não escreve livros. Posso apenas dizer que foi uma sensação exultante, como quando encontramos alguém por quem vamos nos apaixonar. Isso… isso foi o que senti ao descer do trem… como se tivesse encontrado alguém maravilhoso e estivéssemos prestes a iniciar um caso incrível. Esse tipo de entusiasmo, despreocupação e excitação. Voltei para casa em Clapham Junction e comecei a escrever.
Estou escrevendo há dez anos, então o caso deve ser bom.

J.K.R. [em King’s Cross]: Para mim, King’s Cross é um lugar muito, muito romântico. Provavelmente é a estação mais romântica que existe, simplesmente por ser onde meus pais se conheceram. Ela sempre fez parte do folclore da minha infância. Meu pai tinha acabado de entrar para a Marinha, e minha mãe se juntara à Marinha Feminina. Os dois viajavam para Arbroth, na Escócia, vindos de Londres, e se conheceram no trem que saía de King’s Cross. Por isso eu queria que Harry fosse para Hogwarts de trem; adoro trens, sou um pouco viciadinha nesse assunto. E, obviamente, King’s Cross tinha de aparecer.

[Excerto do filme PF: Harry perguntado pela Plataforma 9 ½]

J.K.R.: Como muitas coisas nos livros de Harry Potter é a realidade com alguma coisa diferente, eu queria uma entrada para o mundo mágico, mas sem usar a essa história de distorção temporal. Gosto de entradas que você só pode encontrar se as conhecer. Portanto, qualquer um que ultrapasse a barreira com confiança é capaz de entrar nesta plataforma entre a Nove e a Dez.

[excerto do filme PF: Harry no portal para a Plataforma 9 ½]
J.K.R.: Escrevi sobre a plataforma nove e meia quando morava em Manchester e visualizei errado as plataformas. Eu estava pensando na Euston. Com isso, quem já foi às plataformas Nove e Dez, na King’s Cross, saberá que não guardam semelhança alguma com as que escrevi nos livros. E, só para esclarecer: eu estava em Manchester, não podia checar a plataforma.

J.K.R. [no escritório]: Foram cinco anos da viagem de trem onde tive a ideía original até terminar o livro. E, nesses cinco anos, produzi muito material. Muita coisa nem terá lugar nos livros. Nem precisa estar lá: são coisas que preciso saber para minha própria satisfação. Em parte, para minha satisfação pessoal e, em parte, porque gosto de ler um livro onde sinto que o escritor sabe de tudo. Ele não pode contar tudo, mas você tem confiança de que realmente sabe de tudo.

J.K.R. [no chão, com papéis por todo lado]: Ok, isso é… para os leigos, minhas anotações podem parecer uma pilha de papéis velhos, mas são dez anos de trabalho. Como você pode ver, arquivo tudo detalhadamente e sei onde está cada pedaço de papel – hem-hem – mas escolhi alguns pedaços para vocês… Então esse é o nome de todos os alunos no ano de Harry [mostra um pedaço de papel], todos esses símbolos mostram qual a Casa em que estão, quão mágicos são, qual a origem deles – porque precisaria disso depois para os Comensais da Morte e assim por diante – e as alianças que eles estabelecem dentro da escola [Hogwarts-Library possui informações dessa tabela].

Eu gosto disso, e é bem antigo… é de 1998 e mostra minha tentativa de encontrar uma palavra para “dementadores”, por isso tenho todas essas palavras em latim escritas por todas as páginas do meu caderno. Tenho mania de cobrir qualquer coisa com a minha letra, como você pode ver. Esse é o formulário para abrigo na Gardner’s Crescent, número 28, que é onde… é o primeiro lugar onde morei, obviamente, quando estava em Endimburgo… e o formulário foi tratado com muito respeito por mim [ela escreveu sobre ele todo].

Os primeiros capítulos descartados do livro um, acho que devo ter feito quinze versões diferentes para capítulos do livro um. O motivo porque descartei cada um deles foi o mesmo: eles entregavam demais. Na verdade, se você juntar todos os rascunhos que fiz, quase todo o enredo é explicado. Esse é um velho caderno que usei – e, novamente, não quero que você se aproxime demais – [sacode o papel] essa é a história dos Comensais da Morte! Onde está meu diário português¹? Deus… aqui está! Então, esse é meu diário português , como podem ver. Não está completo, porque jamais enchi um diário na vida, mas era papel para escrever, então aqui temos mais um rascunho do livro um, capítulo um.

Eu desenhei muitas imagens. Para ninguém além de mim mesma, só porque queria ver como os personagens eram [mostra vários desenhos]. Bem, de qualquer forma, esse é Argo Filch, sem prêmios! Snape, obviamente. Esse é Harry chegando na Rua dos Alfeneiros com a Professora McGonagall, Hagrid e Dumbledore. Esse é um carrinho de Gringottes. O Espelho de Ojesed. Esses são os Weasley. Professora Sprout. E eu gosto desse – até pensei que o tivesse perdido, porque queria mostrar ao Chris Columbus, mas é claro que só o encontrei quando já haviam filmado e não ele não era mais necessário – de qualquer forma… assim é como a entrada para o Beco Diagonal funciona na minha imaginação. Por isso Chris vai me assassinar quando descobrir que estava aqui o tempo todo, ele ficou me perguntando como funcionava e estava enterrado em uma caixa.

[Excerto do filme PF: a entrada de tijolos do Beco Diagonal]

J.K.R.: Eu senti como se estivesse escavando um livro desse monte de anotações. E, de fato, foi o que fiz. Era uma questão de condensar, editar e esculpir o livro a partir dessa pilha de coisas que tinha sobre Harry. E pensei que, se fosse publicado, eu realmente pensei – é um livro para obsessivos. Um livro para pessoas que apreciam cada mínimo detalhe sobre um mundo, porque eu tenho todos os detalhes dele.

SF: [Excerto de PF: a lista dos materiais dos estudantes, mostrando um malão sendo magicamente organizado – e música é “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Paul Dukas]

NAR: Enquanto J.K. Rowling continuava criando o mundo de Harry, seu próprio mundo desmoronava. Ela chegou a Edimburgo em 1993, depois de um breve período lecionando inglês em Portugal – lá ela se casou, teve uma filha e separou-se do marido. Ela não tinha emprego nem dinheiro, e uma filha pequena para sustentar.

J.K.R.: Foi a fase onde o rótulo “pobre mãe solteira” grudou no meu nome. Era verdade, mas não bastava ser uma pobre mãe solteira, tinha que escrever em guardanapos, por não ter dinheiro para comprar papel. Isso chegou a proporções ridículas. Não vamos exagerar: eu não tive de escrever em guardanapos. Começaram a acrescentar certas coisas que não eram necessárias, pois a realidade já era bastante ruim.

J.K.R. [do lado de fora de seu antigo apartamento]: Não venho aqui desde que me mudei, em 1994. E não gosto de estar de volta, não quero ofender isso aqui, mas eu… meio que evitei esse lugar desde que me mudei – só pelo fato de que foram seis meses muito infelizes. Eu escrevi bastante aqui e diria que foi onde o primeiro livro virou um livro… porque antes eram apenas três capítulos e uma coleção de anotações. Então, vamos entrar? Ok, vamos.

Eu não poderia olhar objetivamente em volta e dizer “bem, eu fiz sucesso na vida”. Eu tinha 28 anos, vivendo da assistência social, algo em torno de setenta libras por semana, eu não estava empregada… e estar, de repente, em uma posição onde eu não conseguia me sustentar… porque, obviamente, quem já usou a assistência pública infantil sabe que é sorte conseguir trabalhar meio período. É um choque no sistema.

J.K.R. [dentro de seu antigo apartamento]: Ah, meu Deus! Hum, isso está… isso está tão diferente. Isso… ah, meu Deus… hum… ah, uau. Isso está tão diferente do que era quando eu morei aqui – está bom, muito bom. Estou feliz! Você espera que o tempo pare quando você se afasta de um lugar, e eu deveria saber disso, mas eu só… toda vez que me aproximava daqui ou passava de ônibus ou táxi, eu o imaginava exatamente como era quando eu… quando eu morei aqui e isso… tudo foi… eu me sentiria bem morando aqui! Isso é ótimo, na verdade, é como um… como um exorcismo. Tudo estava muito, muito deplorável e sujo, não era culpa do apartamento, geralmente era culpa minha… com freqüência as pessoas me perguntam: “Como você fez? Como conseguiu cuidar de um bebê e escrever um livro?” E a resposta é: eu não fiz serviços domésticos por quatro anos! Eu não sou a Supermulher, vivia na sujeira, essa é a resposta.

J.K.R.: Lembranças dessa época sem dúvida criaram os dementadores.

SF: [Excerto de PdA: descrição dos dementadores, exibindo sombras em um beco escuro]

J.K.R.: Eles são a personificação da depressão. Eu estava muito deprimida naquela época. Ainda acho que é a coisa mais assustadora que escrevi.

J.K.R. [em seu escritório]: De manhã, escrevia em cafés, como todos já sabem, mas quero deixar claro, de uma vez por todas, porque isso está me irritando: não escrevia em cafés porque não tinha aquecimento em casa. Não sou idiota de alugar uma casa sem aquecimento, em Edimburgo, no inverno. Tinha aquecimento. Escrevia em cafés porque Jessica só dormia se eu passeasse com ela. Saia com ela, ela cansava, eu a punha no carrinho e, no momento em que ela dormia, eu entrava no café mais próximo e escrevia.

J.K.R. [no café]: Então esse é o Nicolson’s, onde escrevi grandes partes do livro. Esse é um ótimo lugar para escrever, porque tem muitas mesas no salão e eu não me sentia culpada demais ao usar uma mesa por muito tempo… e aquela era minha mesa favorita. Eu sempre tentava pegar ela porque não ficava no caminho, mas no canto.

É ótimo mudar o olhar quando se está escrevendo, parar e pensar nas coisas, poder olhar a rua, que é bem movimentada. Eles eram bem tolerantes comigo porque um dos donos é meu cunhado. Eu costumava dizer “bem, vocês sabem, quando o livro for publicado, vou dar muita publicidade para vocês” como se fosse uma grande piada. Ninguém imaginou, por um segundo sequer, que isso fosse acontecer.

Você deve ter força para continuar sem promessas de publicação. Devo Obviamente, devo ter acreditado nessa história e eu… eu acreditei mesmo. Mas sentia que devia apostar tudo neste livro. Tinha de fazer minha melhor tentativa. Ao mesmo tempo, a realidade me lembrava que um escritor desconhecido precisa lutar muito para ser publicado e, quem sabia? O fato de eu achar que o livro era ótimo não era garantia de que todos gostariam dele.

[Vemos o rascunho de uma carta que ela mandou ao agente. Segue:

“30 de junho de 1994 [*ano incerto*]
Caro Sr. Little,
Envio em anexo a sinopse e alguns capítulos de exemplo de um livro voltado para crianças dos nove aos doze anos. Ficaria muito agradecida se dissesse que tem interesse em ver o manuscrito completo.

À disposição,
Joanne Rowling”

NAR: J.K. Rowling enviou o manuscrito e conseguiu um agente literário; mas as editoras jogaram Harry na pilha de livros rejeitados.

CHRISTOPHER LITTLE [CL], agente literário: No início ficamos bastante animados na agência, mas foi um livro muito difícil de vender. Muitas editoras o recusaram, era longo demais e falava sobre sair de casa para estudar, que não era visto como algo politicamente correto.

BARRY CUNNINGHAM [BC], ex-editor da Bloomsbury:
Claro que, agora, todos negarão que o recusaram. Querem se distanciar desse… desse terrível erro que cometeram.

J.K.R. [no escritório]: É interessante dar nomes? Você está assentindo, mas não acho que seja uma atitude muito correta.

CL: Todas as principais editoras que conhecemos recusaram.

BC: Entre elas, Puffin & Collins, com muita, muita, mutia certeza. É como recusar os Beatles, não é? A primeira pergunta que J.K. me fez foi o que eu achava de seqüências [ouça isso!] e, depois, me contou toda a história de Harry Potter. A série inteira. [Ele sabe!!!] Percebi, é claro, que ela conhecia muito bem o mundo que criou: como seria, para onde iria, quem estaria nele, como seriam os personagens. Foi fascinante, pois, em geral, isto não acontece… personagens de livros infantis não crescem… você sabe… normalmente. Eles estão presos ao tempo em que estão e as seqüências repetem continuamente o mesmo tipo de aventura. Mas ter um personagem se desenvolvendo! – em tempo real, de acordo com a idade – era uma idéia interessante. Dei um grande conselho a Jo. Dei a Jo um conselho memorável. Depois de almoçarmos pela primeira vez, estávamos sentados e eu disse “O mais importante, Jo, é você-”

J.K.R.: -manter um trabalho de verdade”. Ele disse, Barry disse e Christopher, meu agente, também disse que-

CL:
-autores infantis, você sabe, não conseguem muito dinheiro.

J.K.R.: Os dois estavam sofrendo para não me dizer, “nós realmente gostamos do livro, mas… você sabe, não é vendável”.

NAR: A editora Bloonsburry adquiriu o que viria a se tornar o maior fenômeno da literatura moderna por apenas duas mil e quinhentas libras.

J.K.R.:
Esse foi – depois do nascimento da minha filha – o melhor momento da minha vida. Christopher me telefonou em uma tarde de sexta-feira e disse com muita segurança-

CL: Ela ficou sem fala, certamente, ao menos pelo tempo que demora para uma pessoa tomar fôlego para dar um enorme berro, eu acho.

J.K.R.: Ele perguntou “você está bem? Ainda está aí?” E eu respondi “bem, minha única ambição na vida foi realizada” e foi… eu… foi o melhor momento para mim. Nada tinha chegado tão perto do fato de conseguir uma editora. Eu teria um livro de verdade na livraria. Foi o melhor momento. Meu Deus! Eu fui à [livraria] Waterstone, na Rua Prince, em Edimburgo, e lá estava eu! Entre Ronson e – alguma outra pessoa. Sabe, eu simplesmente estava lá! – na prateleira do “R”, como qualquer outro autor! Incrível. Tive vontade de pegar um livro, autografar e devolver. Mas eu pensei… sabe… me acusariam de rasurar o livro. Eu não tinha cartão de crédito, nem nada para provar que era eu. Não poderia explicar, então não autografei.

NAR:
Harry Potter e a Pedra Filosofal faz a introdução de Harry ao mundo da magia. Ele não é apenas um bruxo, é um bruxo famoso. E é famoso por ter sobrevivido milagrosamente a um ataque do malvado bruxo Voldemort, que matou seus pais. Ao longo de suas aventuras em Hogwarts, ele começa a descobrir os mistérios de seu passado.

PHILIP PULLMAN [PP], escritor: O órfão é um protagonista excelente para qualquer história porque é livre, mas é carente. Carente do que da à criança o sentido de quem ela é, de onde ela vem e de qual é o seu lugar. O órfão fica sem rumo de um modo estranho. Ele tem essa grande necessidade, porque todos queremos saber de onde viemos e qual será, eventualmente, nosso lugar.

[Excerto do filme PF: O Chapéu Seletor]

J.K.R.: Quando ele chega à escola, está inseguro. Ele sente coisas que todos sentimos – os adultos também – quando entramos em um lugar desconhecido. Mas está exagerado pelo fato de ser excluído, seja por sua fama, seus ancestrais, ou pela peculiaridade de sobreviver ao que deveria ser um ataque fatal. Ele é um menino qualquer com uma peculiaridade.

NAR: Na história de J.K. Rowling, a mistura do cotidiano com a magia, do comum com o místico, permeia os livros.

J.K.R.:
Eu acho que o mundo de Hogwarts, ou meu mundo mágico, meu grupo de bruxos, é como o mundo real em um espelho bem distorcido. Não vamos para um planeta diferente, não atravessamos túneis do tempo. É um mundo de fantasia que sobrevive lado a lado ao mundo real.

SF:
Acho que o que gostei em Harry Potter no início foi a mistura de… eu não direi fantasia porque eu sempre penso no sentido negativo dessa palavra. E fantasia nem sempre funciona, e isso é baseado na realidade – essa realidade que me chamou atenção, de certa forma. A verdadeira história da magia, segundo o folclore inglês, está tecida na realidade. Ela não inventou um mundo mágico, o que é ótimo – uma fantasia Disneyana de “o que ela sonhou vai se tornar realidade!”, porque Harry Potter não nos apresenta um mundo assim. É conectado e tem um grande histórico de mitologia folclórica. Não estou tentando classificá-lo em um gênero literário ao qual a própria Rowling não crê pertencer. Só que é assim que as coisas funcionam, porque isso não acontece se for resultado de uma fantasia criada sem base alguma.

J.K.R.: A magia sempre é fascinante. Sempre haverá livros sobre magia porque ela está muito arraigada em todos nós. Em todas as sociedades, o mundo da magia vem primeiro. E ainda… sofisticados como achamos que somos, a idéia de “eu posso fazer algo que influenciará este ambiente imenso e assustador em que tenho de exisitir”, o sonho de virar um bruxo e controlar o ambiente ainda é muito grande, tanto para adultos, quanto para crianças.

SF: [Excerto de PF: monólogo de Snape em “O Mestre das Poções”, exibindo vários líquidos de todas as cores fermentando em frascos, tubos e garrafas.]

J.K.R.: Não acredito em bruxaria. Mas perdi a conta das vezes que disseram que eu a pratico. Noventa… digamos que, pelo menos, noventa e cinco por cento da magia nos livros foi totalmente inventada por mim. E usei coisas do folclore, coisas nas quais o povo acredita que funciona, com magia, só para dar um certo sabor – mas sempre mudei tudo para se adequar ao que eu queria, quero dzier, tomei algumas liberdades com o folclore para que se encaixasse no meu enredo.

Bruxas e bruxos são uma grande parte da literatura infantil. Eles nunca vão sair de moda. Eu acho que eles nunca, nunca, nunca mesmo vão sair da moda, cem anos, duzentos anos e haverão outros tipos de histórias com bruxos.

NAR: Em 1997, J.K. tinha começado o segundo livro da série, Harry Potter e a Câmara Secreta. O livro um ia bem, mas nada perto da sua popularidade de hoje. J.K. Rowling ainda sobrevivia do seu trabalho como professora.
Então, aconteceu algo que poderia mudar o seu mundo para sempre. Harry Potter fez seu feitiço atravessar o Atlântico e editoras americanas travaram uma guerra de ofertas pelo livro.

ARTHUR A. LEVINE, Vice-Presidente, Editora Scholastic: Meu chefe dizia, “Ok, você gosta disso?” e eu respondia “Sim, gosto”. “Ok, fique no leilão. Você gosta desses dólares todos?” “Uhm, sim”. [risada nervosa] Eu continuei dizendo sim. Estava ficando cada vez mais nervoso, uhm, porque no final do dia era mais dinheiro do que eu já tinha pago para qualquer autor antecipadamente, ainda mais para um autor estreante. Era sem precedentes. E ela disse, “Você gosta de US$105.000?” E eu disse, “Sim! Sim!” E ela disse, “Então vá em frente e faça a oferta”. E assim foi.

NAR: O acordo com a Scholastic, significou que finalmente J.K. Rowling poderia realizar a maior ambição de sua vida: se tornar uma escritora em tempo integral.

J.K.R.: Quando soube que pessoas escreviam livros… que eles não surgiam simplesmente, não sei, do nada – como as plantas – decidi que era isso que eu queria fazer. Só lembro que sempre quis ser escritora. Também é misterioso para mim, mas… E ao mesmo tempo não é. Veja bem, na verdade, eu honestamente não posso compreender porque porque alguém não quereria ser escritor. Não entendo porque o mundo não quer ser escritor. O que há de melhor?

J.K.R.: Se você não lembra como é ser criança, não deveria se envolver com literatura infantil. Me lembro bem de como era naquela idade. Ainda que as pessoas detestassem os livros, e eu não prestasse para escrever mais nada, ao menos para isso prestaria, porque lembro vivamente como sentia nessa idade.

NAR:
As lembranças da infância de J.K. influenciaram grandemente sua escrita. Ela nasceu em 1965, em Chipping Sodbury e cresceu em Bristol com seus pais, Anne e Peter, e sua irmã mais nova, Di. Ela admite ter sido estudiosa e mandona quando criança, não muito diferente de uma das melhores amigas de Harry…

[Excerto do filme PF: Rony tentando o feitiço de levitação]

J.K.R.: Quando comecei a escrever Hermione, quando peguei a caneta, ela surgiu com incrível facilidade, provavelmente porque ela sou eu.

[Excerto do filme PF: Hermione fazendo o feitiço de levitação]

J.K.R.: Eu era cdf e muito insegura, tentava compensar isso fazendo tudo certo. Como Hermione, projetei uma falsa confiança que às vezes irrita muito os outros. Mas, por dentro, me sentia totalmente inadequada, por isso entendo Hermione tão bem.

NAR: Mesmo quando era uma criança pequena, J.K. Rowling adorava escrever, terminando seu primeiro livro aos seis anos.

J.K.R.: O primeiro livro que eu terminei foi um livro chamado “Coelho”, sobre um coelho chamado Coelho. Tinha uma abordagem muito criativa em relação aos nomes que me tem sido muito útil desde então. Escrevi as histórias do Coelho por anos até o momento onde, eram uma série, uma série de livros meio sem graça sobre o Coelho, uhm, ilustrados pelo autor.

O livro que eu poderia dizer que realmente influenciou meu trabalho foi “The Little White Horse” de Elizabeth Goudge. Ela sempre citava com precisão o que eles comiam. Em qualquer ponto que estivesse do livro, se houvesse uma refeição, você saberia exatamente do que eram feitos os sanduíches e eu lembro de achar isso extremamente interessante quando era criança.

SF: [Excerto de PdA: descrição dos doces em Hogsmeade, mostrando a variedade de doces próximo à vitrine]

Na minha adolescência, entrei num realismo muito dramático influenciado totalmente por Barry Hinds e Kes. Infelizmente, eu não vivia em um vilarejo do norte. Minha paisagem urbana não era muito desenvolvida, porque morava em Chepstow, em meio a muitos campos, e é difícil se livrar das influências se você cresceu em um campo enlamaçado.

J.K.R. [na casa em que morou na infância]: Então, essa é a nossa casa, obviamente, onde morei a partir dos nove anos. Meu quarto é o que fica bem à direita, e eu passava bastante tempo lá, escrevendo. Tenho memórias muito felizes desse lugar, na verdade, é bem emocionante voltar aqui, porque eu só vim uma vez… porque meu pai deixou essa casa logo depois da minha mãe morrer. Então, só voltei aqui uma vez desde que minha mãe morreu. Lembro de ficar pendurada na janela do meu quarto, fumando atrás da cortina no meio da madrugada. Meu pai não vai ficar feliz de ouvir isso. Eu não era muito esperta também, porque, você sabe, costumava jogar as bitucas, bem, você sabe, embaixo da janela. Quero dizer “ah, sim, pai, alguém do pub andou jogando isso no nosso quintal novamente”.

Você viu nossa casa, a igreja e a escola de uma vez só. Tutshill não é um lugar grande – é minúsculo. Então era uma caminhada curta, obviamente, de casa para a escola, toda manhã. E eu sempre me atrasava, para desespero da minha mãe. Eu me atraso para praticamente tudo.

Professora: Ergam a mão se vocês leram algum dos livros de Harry Potter. [engasgos] Todas essas pessoas! E agora, esta manhã temos uma convidada muito especial na escola. Seu nome é J.K. Rowling e ela veio conversar conosco.

J.K.R. [entra na sala, cumprimentando as crianças sentadas no chão enquanto caminha entre elas]:
Não quero pisar em vocês, fiquem onde estão [pisando em um garoto] nnggg… Olá!

TURMA: Olá!

J.K.R.: Como vocês estão??

TURMA: Bem.

J.K.R.: É absolutamente fantástico para mim voltar aqui porque, sabem, foi onde eu estudei. É realmente maravilhoso voltar.

J.K.R. [voz sobreposta]: Nada é mais divertido do que encontrar crianças que leram os livros. O que mais poderia me deixar mais feliz do que pensar que crianças começaram a ler com Harry Potter? Algumas crianças, obviamente, já eram verdadeiras traças e, para elas, Harry é só mais um livro. Mas já encontrei muitas crianças que disseram que Harry lhes mostrou, de fato, o prazer da leitura.

CRIANÇA: Que conselho você daria para nós, jovens autores?

J.K.R.: Você gostaria de ser uma autora? [a garota dá de ombros e responde: “talvez”] Leia tanto quanto puder. Eu diria, leia tudo. Quanto mais você ler, melhor, porque vai descobrir o que gosta e o que faz uma leitura ser boa, sem contar que aumenta seu vocabulário. Além disso, você tem de continuar sempre escrevendo. Vai descobrir que as primeiras coisas que escreve são horríveis, mas, mais cedo ou mais tarde, alguma coisa vai ser boa. E muitas árvores terão de morrer, porque você vai amassar muito papel enquanto isso.

CRIANÇA: E… em que casa de Hogwarts você gostaria de estar?

J.K.R.: Eu definitivamente gostaria de estar na Grifinória. Por isso coloquei Harry lá. Definitivamente.

CRIANÇA: Que memórias você tem de estar na escola de Tutshill?

J.K.R.: Eu gostava muito daqui, mas minha primeira professora me assustou muito. Seu nome era Sra. Morgan. Ela escolhia nossas posições na sala de acordo com a inteligência que pensava que tínhamos. No meu primeiro dia, ela conversou comigo por dois minutos e me colocou em meio aos “alunos idiotas”, e foi a coisa mais horrível que vi um professor fazer. Ela não era minha professora preferida, a Sra. Morgan. Então fui para Wydean – no final da rua. Onde os irmãos de quase todos aqui estudam, não é?

Estava na Wydean quando encontrei Sean, que é uma amizade muito importante na minha vida. Imensamente importante. Eu sempre me senti deslocada e talvez isso explique porque Sean e eu éramos tão próximos – ele entrou atrasado e, como eu, não tinha o sotaque local. Por isso, acho que, de certa forma, nós dois nos sentíamos como estrangeiros aqui, e isso nos uniu.

J.K.R. [parada com Sean, com uma ponte ao fundo (Angharad suspeita que essa seja a Ponte Severn)]: Então, esse é Sean, a quem o segundo livro de Harry Potter é dedicado. E Rony deve um pouquinho a Sean.

[Excerto do filme PF: Rony se surpreende com a capa de invisibilidade de Harry]

J.K.R.: Eu nunca tive intenção de descrever Sean em Rony, mas Rony tem algumas partes bem Sean.

[Excerto do filme PF: Harry e Rony atrasados para Transfiguração]

SEAN HARRIS [SH], amigo: Suponho que as semelhanças são que ele não… ele nunca estava entre os onze primeiros a serem escolhidos para times, mas estava quase. E eu acho…

J.K.R.: Bem, se eu puder brincar – desculpe.

SH: Eu ia dizer, academicamente, por exemplo, na escola, estava muito claro que Jo era… eu não estou sendo… constrangimento de lado… era das primeiras. E eu sempre me agarrava a ela… copiava lições, ocasionalmente e… hum…

SH: Acho que o… personagem Rony, acho que surgiu de mim. Talvez eu tenha interpretado mal, mas ele está sempre ali, ou próximo, sempre bem-intencionado.

J.K.R.: Ele está sempre ali quando se precisa dele, esse é Rony Weasley! Sean foi o primeiro de meus amigos a conseguir carteira de habilitação e ele tinha esse antigo Ford Anglia, de capô um pouco turquesa, um pouco branco, que é agora o famoso carro dos Weasley – eu obviamente daria aos Weasley o antigo carro de Sean. Aquele carro era a liberdade para nós. Meu coração ainda bate mais forte quando eu vejo um Ford Anglia velho, o que é um pouco triste…

SF: [Excerto de CS: Voando no Ford Anglia, com cenas de um Ford Anglia passando por uma estrada e por suas árvores.]

J.K.R.:
Ele era o cara mais legal da escola, tinha um Ford Anglia azul [ambos riem] e era bem vanguardista, acho.

SH: Eu era, naquela época, sim.

J.K.R.: É.

SH: Tudo foi pro espaço, mas-

J.K.R.: O corte de cabelo do Spandau Ballet. Desculpe.

SH: E – em uma tarde ela me ligou e disse “venha me buscar”, eu dirigi até lá e saímos para algum lugar… então o carro tornou-se-

J.K.R.: – e sentamos sob a Ponte Severn.

SH: Sentamos sob a Ponte Severn ou… ou alguma outra.

J.K.R.: E discutimos a vida! E bebemos!

SH: Em absoluto.

J.K.R.: É uma vida bem patética, não? Isso, isso é o que eu pensava ser emocionante aos dezessete anos. Nós sentávamos aqui em um Ford Anglia. É, essas crianças das cidades, não sabem o que estão perdendo [rindo].

NAR: J.K. Rowling escapou para a universidade em Exeter e formou-se em Francês e Literatura antes de mudar para Londres. Então, a bomba a atingiu. Sua mãe, Anne, lutava contra esclerose múltipla há dez anos, quando a doença tirou sua vida.

J.K.R.: A morte da minha mãe foi uma dor profunda para mim. Dor por ela – por ela ter morrido e por ter perdido tanta coisa da vida – ela tinha 45 anos, era jovem demais para morrer e deixar a família. Ela nunca soube o que todos acabaram fazendo. Para ela, teria sido uma glória me ver escritora, porque ela era uma grande apreciadora de livros. Isto dá um certo amargor à minha vida, se puder dizer, pois ela nunca viu a única coisa que teria apreciado… ela nunca soube.

Dois ou três dias depois que tive uma idéia para Harry, eu matei seus pais de um modo brutal, não cr- não cru – eu não li como algo cruel, quero dizer, foi curto e grosso, nada que se estendesse, nenhum debate sobre como aconteceu ou – e, naquele momento, nenhuma discussão sobre quão doloroso isso seria. Bem, é claro, minha mãe morreu seis meses depois de eu ter escrito o primeiro rascunho do capítulo de abertura. E fez uma grande diferença porque eu estava vivendo o que – o que tinha acabado de escrever.

O espelho de Ojesed é totalmente baseado na minha experiência de perder a mãe. Só mais cinco minutos, por favor, Deus, me dê mais cinco minutos. E nunca seria o bastante.

[Excerto do filme PF: Harry diante do Espelho de Ojesed]

Depois de cinco minutos falando sobre Jessica e, você sabe, é a neta que ela nunca conheceu, contaria a ela sobre os livros, mas esqueceria de perguntar como é estar morta; uma pergunta importante. Posso imaginar isso acontecendo, mas não seria muito longo, que era propósito do capítulo 10. É mais difícil para os que ficam vivos, e você tem de aprender a superar isto.

[Excerto do filme PF: Confronto com Quirrel/Voldemort]

A morte é um tema extremamente importante em todos os sete livros. Eu diria que é o tema mais importante. Se escreve sobre o mal, como eu estou escrevendo, e se escreve sobre alguém que é, essencialmente, psicopata, você tem o dever de mostrar a verdadeira maldade de tirar a vida humana.

J.K.R. no Nicolson’s Cafe:
Mais pessoas vão morrer. E elas, bem… há, pelo menos, uma morte que eu… que… que será horr.. horrível de escrever. De reescrever, na verdade, porque ela já está escrita. Mas – é como tem de ser.

NAR: Alguns pais perguntam-se se os filhos poderiam lidar com o lado mais obscuro dos livros.

J.K.R.: É interessante os pais acharem que tem o direito de mandar em mim só porque escrevo para os filhos deles. Recebi uma carta horrível no segundo livro, muito, muito irritada, de uma mãe que dizia “o final do livro é perturbador, uma escritora com sua habilidade pensaria em um final melhor para o próximo livro”. Então, basicamente, “eu gostei até dois terços do seu livro, mas se você levantar essa questão novamente no futuro, escreverei de novo, se achar inapropriado”. Foi nessa hora que reagi e escrevi de volta para ela. “Não leia os outros livros. Sinceramente, Jo Rowling”. Isto não é questionável. Não aceitarei imposições.

Se me importo com os leitores? Muito e profundamente, mas… se acho que eles devam dar mandar em alguma palavra que escrevo? Não. Só eu devo ter o controle disso. Não escrevo para que o filho dos outros se sinta seguro.

SF: É uma escritora durona. Ela não compromete o que acha certo só por se preocupar que vai assustar as crianças. Acho que uma função da literatura é dar pesadelos às crianças, é como tudo funcionada, sabe, como se desse uma doença para as tornar mais fortes. Porque se elas não tiverem pesadelos aos doze anos, [se] não lutarem contra o temor do desconhecido, então, quando ficarem mais velhas… quando tudo aumentar, já que quando você tem trinta anos, as coisas são mais complexas do que eram aos oito anos. Então, estamos fazendo às crianças um grande favor.

Criança 1 [discutindo com outras crianças]: Uma vez, eu estava lendo na cama – e foi bem assustador, quando, Voldemort meio que aparece e eu me encolhi na cama. Fiquei como: [fala com uma vozinha] “O que vai acontecer? O que vai acontecer?” e tive muito – bastante medo.

Criança 2: É assim… quando fica tudo tenso, e você está lendo na cama, seu pai aparece e diz “Ah, vai ter que parar de ler isso, é hora de dormir” e você está na melhor parte do livro e fica “ahh, eu preciso ler o próximo capítulo!”

Criança 3:
É legal que os adultos lêem também, não só as crianças.

Criança 4: Queria saber o que pensam disso.

Criança 4: Eles estão mesmo nessa de Harry Potter.

Criança 5:
Porque é para todas as idades, todo mundo gosta.

PP: Um erro dos adultos sobre os livros infantis é achar que eles devem lidar com coisas banais. Coisas pequenas que agradam mentes pequenas, preocupações pequenas para gente pequena. Nada poderia ser mais distante da verdade. É o contrário. Observei que muitos livros adultos bem criticados, ou de grande sucesso nos últimos anos, lidam com coisas banais como: “meu traseiro fica maior assim?” ou “Meu time preferido de futebol vai ganhar o campeonato?” ou “Ah, minhas namoradas me deixaram, o que vou fazer?” Enquanto os livros infantis lidam com questões essenciais: “De onde viemos?”, “Qual a natureza do ser humano?”, “O que devo fazer para ser bom?”. Essas são perguntas profundas, perguntas de suma importância. E as pessoas precisam lidar com elas. Extensivamente, não nos livros que os adultos lêem, mas nos que as crianças lêem.

NAR: O lançamento do terceiro livro, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, em 1999, marcou a transformação de Rowling, de autora popular para estrela internacional. Pela primeira vez três livros da mesma escritora encabeçavam a lista de mais vendidos do New York Times e suas noites de autógrafos começaram a parecer shows de rock.

J.K.R.: Não tenho idéia quantos livros autografei, mas devem ter sido dezenas de milhares. Então, se alguém quer ser dono do último livro não-autografado… às vezes, acho que não deveria autografar. “Não peça autógrafo, um dia será valioso. Nunca toquei nele!”.

O interessante das editoras internacionais foi ver quão diferente interpretavam Harry. Esse, da minha editora italiana, é engraçado. Na primeira edição de Pedra Filosofal, tiraram os óculos de Harry [na capa], o que me chateou muito. Era como se, na Itália, o herói não pudesse usar óculos. Mas puseram de volta. E algo bizarro: Harry usa chapéu em forma de rato. Não entendi o porque do chapéu de rato, mas tudo bem.

[Excertos de PF sendo lidos por crianças em vários idiomas: inglês (estadunidense e britânico), sueco, hebreu, espanhol, francês, alemão, turco, italiano, japonês, grego, inglês (estadunidense e britânico)]

NAR: Quando o quarto livro foi publicado, no verão de 2000, J.K. havia enfeitiçado leitores do mundo todo. Harry Potter e o Cálice de Fogo foi lançado à meia-noite do dia oito de julho e a pottermania virou febre, com milhares de fãs esperando durante horas pelo livro.

[Menino lendo o fim de CdF] SENHORA: Não leia o final antes do começo! Não faça isso!

MENINA: Ah, Deus, não é assim que isso deveria começar, definitivamente! [ela protesta contra CdF, aparentemente]

NAR: Em Toronto, uma audiência de doze mil pessoas se juntou para a maior leitura já feita. J.K. Rowling estava aterrorizada.

J.K.R.: Eu nunca fui boa em falar em público – tenho quase uma fobia. E, então, pensei: “O que eu fiz?”

Apresentador do evento fala em voz alta: Senhoras e senhores, meninos e meninias, J.K. Rowling! [ele dá um passo para o lado, dando espaço para a autora, que entra em cena]

J.K.R.: Eu me senti tão pateticamente, erroneamente inadequada para a tarefa que tinha a desempenhar. Fiquei lá com meu livro, tremendo. Usava dois tampões no ouvido, então, só podia ouvir de longe o barulho da multidão.

J.K.R. [falando no palco]: Bom dia! [altos aplausos] Estou feliz e aterrorizada de estar aqui, para ser sincera.

J.K.R. [voz sobreposta]: Então fiz a leitura e, quando comecei, tudo deu certo.

J.K.R. [palco]: “…mas Duda continuou passando a mão no traseiro enquanto caminhava…”

J.K.R.: …então eu terminei e disse: “Muitíssimo obrigada” isso – seja lá o que disse, eu só queria ouvir como soava, e tirei um dos tampões do ouvido… foi como se meu tímpano explodisse [aplausos muito altos]. Eu finalmente ouvi o barulho que todos ali ouviam, foi inacreditável.

J.K.R. [palco]: Obrigada, obrigada! [acena e sai]

J.K.R.: Se me levassem ao passado e me dissessem exatamente o que ia acontecer, eu não acreditaria – nem um pouco. E se, ainda assim, conseguissem me convencer da verdade, eu não saberia o que fazer, porque teria pensado: “bem, eu não vou conseguir lidar com isso, não saberei o que fazer”. Então, isso é o que eu teria feito. E tem pessoas assistindo isso que nunca acreditarão, por causa do dinheiro, mas a realidade, às vezes, é uma coisa estranha e terrível.

NAR: Com a fama e o sucesso, veio a atenção incômoda de toda mídia mundial. Harry precisa lidar com esse mesmo problema no livro quatro, quando encontra uma jornalista mal-educada chamada Rita Skeeter.

SF:
[excerto de CdF: Rita Skeeter se prepara para entrevistar Harry, mostra uma atriz interpretado Skeeter – bem assustador]

J.K.R.:
Originalmente, Rita Skeeter aparecia no livro um. Harry entrava no Caldeirão Furado, que é o lugar onde ele descobre pela primeira vez como é ser famoso. Pela primeira vez, isso o atinge. E tem um rascunho muito antigo desse capítulo, onde Rita entrava na fila para falar com ele. Mas essa ousada jornalista se encaixa melhor no livro quatro, que é quando os inconvenientes da fama começam a alcançar Harry. Pouco sabia eu que, quando escrevesse o livro quatro, haveria a chance das pessoas pensarem “A-rá! Nós sabemos porque você colocou a Rita ali, porque agora você encontrou alguém assim”, mas, quero dizer, quão irônico é o fato de eu ter passado cinco anos me imaginando na mente de um garoto que ficou famoso de repente? Quero dizer, passei cinco anos fazendo isso – imaginando como seria viver na total ignorância e, de repente, ser famoso.

[Vemos flashes de manchetes… todas tem “Rowling”]

J.K.R.:
Não é agradável vê-los invadindo áreas que não têm absolutamente nada a ver com meu trabalho. Quero dizer, tem muito na minha vida sem ligação alguma com Harry Potter. Jornalistas que ficarão inominados… mas não consigo pensar porque, porque essas pessoas deveriam pagar por seus crimes – eles foram atrás do meu pai e entraram em uma péssima linha de questionamento com ele, algo como “por que sua filha o odeia?”, o que foi um choque pra ele, já que tínhamos acabado de nos falar no telefone. Bem incômodo. Eles chegaram e “me empurraram contra a porta”: apareceram e começaram a bater na porta da frente e eu… isso me surpreendeu completamente, porque, na minha ignorância, eu pensei: “Ah, se eu apenas ficar em casa e trabalhar…”, você sabe, então… e… e então, acho que percebi que isso não daria certo.

NAR: E, em alguns lugares, os livros provocaram controvérsias. J.K. Rowling tornou-se o pivô de uma caça às bruxas, com alguns grupos cristãos afirmando que os livros incentivavam o ocultismo. No estado americano da Carolina do Sul, os pais até tentaram proibir Harry Potter nas salas de aula. [corta para audiência do Conselho Escolar na Carolina do Sul]

Cidadão #1: Acreditamos que os livros promovam a religião da bruxaria, a Wicca.

Cidadão #2: Estou profundamente preocupado. Passei muito tempo chorando em minhas orações, porque vi os efeitos que os pensamentos negativos têm na mente das nossas crianças.

J.K.R. [encara]: Pausa por todas as coisas rudes que estão fervendo dentro de mim para que as diga a essas pessoas – e agora direi a versão educada, e a versão educada é essa: Não é verdade. Nunca uma criança me disse “por sua causa, decidi devotar minha vida ao ocultismo”. As pessoas subestimam as crianças ao extremo. Elas sabem que é ficção. Quando as pessoas brigam por esse tipo de opinião a razão não funciona bem. Mas duvido que essas pessoas tenham lido meus livros, para começo de conversa.

NAR: Até agora, nada pode obscurecer o sucesso de J.K. Rowling. E o tão aguardado filme Harry Potter e a Pedra Filosofal obteve o melhor fim-de-semana de estréia da história do cinema.

J.K.R.: Quanto mais a estréia se aproximava, mais assustada eu ficava. À hora em que sentei para ver o filme, eu estava aterrorizada, só pensava: “Não coloque nada que não está no livro. Não tome liberdade demais”. Mas eu gostei, o que foi um alívio, como você pode imaginar. É, eu estou… eu estou contente.

NAR:
E a jornada de Harry está longe de terminar. Os fãs estão loucos para colocar as mãos no quinto livro, Harry Potter e a Ordem da Fênix.

J.K.R. [no Nicolson’s Cafe]: Estou adorando escrever o livro cinco. Harry vai a lugares do mundo mágico que ainda não visitamos. Há mais questões sobre meninos e meninas. Eles têm 15 anos, os hormônios estão trabalhando. E Harry fará perguntas que espero que o leitor pense “por que ele não perguntou isso antes?”. Harry descobre mais coisas, muito mais coisas, sobre seu passado neste livro.

NAR: Mas o mistério só será finalmente revelado no sétimo livro. J.K. Rowling já escreveu o final.

J.K.R. [rindo sobre a pilha de anotações]: Isto era uma coisa que eu estava com muita dúvida se mostraria para você. E eu realmente não sei porque, o que isso iria revelar. [mostra uma pasta] Mas isso é o capítulo final do livro sete. Uhm [risos] o que, eu ainda tenho dúvidas sobre mostrar a você. Eu não sei. Eu sinto que a câmera vai ser capaz de ver através da pasta. Então é isso aqui, e eu não vou abrir por motivos óbvios. Aqui é… aqui é de fato onde eu amarrei tudo, é o epílogo. E eu, eu basicamente falo o que acontece com todo mundo após deixarem a escola – aqueles que sobrevivem – porque existem mortes – mais mortes chegando. Era uma forma de dizer para mim mesma, “Você vai chegar lá, você vai chegar no livro sete um dia. E então você vai precisar disso!”. Então eu gostaria de lembrar todas as crianças que eu sei que vem até a minha casa e começam a mexer nos armários, que não está mais lá – eu não guardo mais em casa por razões, muito, muito, obvias. Então aqui está.

¹ Aqui fica meio difícil saber se ela diz Português no sentido da lingua em que é escrito ou da característica do diário.

Traduzida por: Renata Schüller em 02/06/2007.
Revisada por: Adriana Couto Pereira em 12/09/2007.
Postado por: Vítor Werle em 26/09/2008.
Entrevista original no Accio Quote aqui.