Jensen, Jeff. “O Trovão de Rowling”, Entertainment Weekly, 4 de agosto de 2000

Enquanto Harry Potter e o Cálice de Fogo pega o caminho expresso para ser um campeão de vendas, JK Rowling explica porque escrever é um desafio tão grande embora ela esteja longe de sumir na névoa.

Em um dia normal, o trem se chama Queen of Scots (Rainha dos Escoceses). Hoje, ele se chama “Expresso de Hogwarts”, o trem que transporta Harry Potter para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, e está agora mesmo em uma estação em Perth, a 90 minutos de Edimburgo, na Escócia. Como nuvens de algodão a fumaça vai saindo do motor, um espetáculo pequeno e raro para as centenas de crianças esperando no portão temporário de número 9 3/4. Poderia ser tudo bem fofo, não fosse o grito agudo que acompanha todo o vapor que sai­ do trem, um barulho perfurante e duradouro que faz a multidão tampar os ouvidos, todos olhando para aquele motor infernal, imaginando se em algum momento ele vai parar.

E então ele pára.
E uma porta se abre.
Dentro, nesta, a última parada enevoada da temporada no Reino Unido para divulgar Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto livro da série sobre um jovem bruxo extraordinário, JK Rowling, 35, sentada na borda de uma mesa, cumprimentou um sortudo grupo de crianças, seus rostos mostrando bastante excitação. “Olá, vencedores do concurso”, disse a rainha de cabelos loiros e calças jeans, seu sorriso amarelo e quente embrulhado com afeição por eles, seus súditos. Os atendentes da Editora Bloomsburry chama um deles para tirar uma foto com ela. “Agora”, Rowling diz com tom de conspiração, autografando seu livro, “finja que está feliz em me ver”.
Ele não precisa fingir. Mas tudo que ela pode fazer é fingir que nada disso é tão delirantemente chocante quanto realmente é. Como ela diz na conversa de 60 minutos entre Edimburgo e Perth, “Você pode ficar louco se pensar demais nesse assunto”.

Como se sente em relação a toda a excitação da publicidade em torno do Cálice?
A publicidade girava literalmente em torno de “não distribuir os livros”. E não foi nem uma estratégia publicitária. Aquilo veio de mim. O livro era o resultado de 10 anos de trabalho, e uma coisa muito grande em termos do meu avanço na trama acontece no fim, e marca o fim de uma era; os três livros que faltam são de uma era diferente na vida do Harry Potter. Se isso tivesse vazado, o livro não poderia ser tão agradável de ler.

Você fez o tí­tulo há muito tempo, também.
A questão do nome tinha uma razão muito mais simples: eu mudei de idéia duas vezes a respeito dele. O tí­tulo que eu tinha em mente era Harry Potter and the Doomspell Tournament (Harry Potter e o Torneio Maldito, em tradução livre). E então eu mudei o nome de Torneio Maldito para Torneio Tribruxo. E então eu fiquei em dúvida entre Cálice de Fogo e Torneio Tribruxo. E no fim, eu preferi Cálice de Fogo, porque fica esse mistério de “copo do destino”. Que é o tema do livro.

Esse foi o livro mais difí­cil para você escrever até agora?
Tranquilamente.

Por quê?
Nos primeiros três livros, meu plano nunca falhou. Mas eu deveria ter colocado a trama num microscópio. Eu escrevi o que achei que fosse metade do livro, e “Ack!” Lá estava um enorme buraco no meio do enredo. Eu perdi o prazo em dois meses. E toda a expectativa pelos livros aumentou muito desde o terceiro livro, então havia uma grande pressão externa.

E o que era exatamente era esse buraco?
Eu tinha que criar um personagem. Era assim: “Um personagem fantasma de Harry Potter”. Era uma prima Weasley (parente de Rony Weasley, o melhor amigo do Harry). Ela teria a função que Rita Skeeter (uma jornalista investigativa fajuta) agora desempenha. Rita sempre esteve planejada para o livro, mas eu tive que aumentá-la, porque eu precisava de uma ponte para passar as informações para fora da escola. Originalmente, essa garota teria tal finalidade.

A Rita reflete o que você acha sobre a mídia?
Não, mas quando chegou o ponto da trama em que fui colocar a Rita, eu hesitei, porque pensei que as pessoas iam achar que essa era a resposta ao que me fizeram. Mas eu me diverti muito mais escrevendo a Rita do que se eu tivesse feito de outra forma. Rita vai voltar.

O tamanho desse livro, “734 páginas”. Quase o dobro do maior livro que você tinha escrito antes.
“O que ela está fazendo?”

Exatamente. Por favor, explique.
Eu sempre soube que esse seria o maior dos quarto primeiros. Você precisa de uma explicação adequada para o que acontece no fim. É um enredo complexo, e você não corre em uma trama tão complexa, ou todo mundo vai ficar confuso.

Este livro é o épico em tela grande. Com a Copa Mundial de Quadribol, a chegada das escolas rivais, o Torneio Tribruxo, a batalha final…
Tudo está numa maior escala.

Intencional?
Sim. Isto é simbólico. Os horizontes do Harry estão literalmente e metaforicamente crescendo com ele. Mas também existem lugares no mundo que eu planejei e pensei por tanto tempo que ainda não explorei, e é tão divertido. Isso vai acontecer no livro 5, também; nós vamos para uma área totalmente nova, fisicamente, uma área nunca vista antes, um mundo mágico.

Nós algum dia veremos Harry na América?
Improvável. O campo de batalha está na Grã-Bretanha por enquanto. Outro dia me perguntaram: “Dado o enorme sucesso dos seus livros na América, você pensa em colocar personagens americanos?” E eu pensei: você é um idiota. Eu não estou a ponto de jogar fora 10 anos, meticulosamente planejados, na esperança de arrecadar mais um poucos leitores. Crianças americanas não têm necessariamente que ver sí­mbolos americanos nos personagens. Essa é outra maneira grosseira das pessoas subestimarem as crianças.

Um dos principais temas do Cálice de Fogo é a intolerância. Isso está sempre nos seus livros, com o hitleriano Lord Voldemort e seus seguidores cheios de preconceitos contra os Trouxas (pessoas não-bruxas). No livro 4, Hermione tenta libertar os Elfos domésticos da escola, que foram servos domésticos durante tanto tempo que eles não sentem mais desejo por nada. Por que você quis explorar esses temas?
Porque a intolerância é provavelmente a coisa que eu mais detesto. Todas as formas de intolerância, toda a idéia de “o que é diferente de mim é necessariamente mau”. Eu realmente gosto de explorar a idéia de que a diferença é igual e boa. Mas existe outra idéia que eu gosto de explorar, também. Os grupos oprimidos não são, em geral, pessoas que se apóiam e ficam juntas; não, infelizmente, elas meio que se subdividem e lutam entre si. Isto é da natureza humana, portanto isto é o que vemos. Neste mundo de magos e bruxas, eles já estão banidos, e mesmo entre eles, eles formam uma ordem repugnantemente afiada.

Você não acha que isso é um pouco pesado para crianças?
Isso é algo em que um número enorme de crianças começa a pensar nessa idade. É realmente divertido escrever sobre isso, mas de um modo bem alegórico.

Os livros refletem sua própria sensibilidade polí­tica? Na América, alguns poderiam dizer que você é bastante esquerdista.
Isto é absolutamente o inverso da imprensa britânica; Ontem me disseram que eu sou uma Eurocética, que é uma palavra que está na moda na Grã-Bretanha. De fato, acordei às 2:00 horas esta manhã, fui à cozinha para beber um pouco d’água e pensei: “Sei porque eles disseram aquilo, eles não terminaram o livro”. Bem no fim, Dumbledore diz, “As diferenças de hábito e lí­ngua não são absolutamente nada se os nossos objetivos forem idênticos e os nossos corações estiverem abertos”. Esta é minha visão. É muito inclusivo e sim, você tem razão: sou esquerdista.

Mas você está colocando as suas crenças polí­ticas nesses livros, ou estamos lendo somente o material que tem neles?
Há um pouco de material polí­tico lá. Mas também sinto que cada leitor trará seu próprio ponto de vista ao livro. As pessoas mandam seus filhos para as escolas internas e sentem que eu estou com eles. Eu não estou. Os praticantes de Wicca também pensam que sou uma bruxa. Eu não sou.

PARTE DOIS

Ela já foi uma mãe solteira lutadora, se esquivando para cafés para escrever depois de pôr sua filha na cama. Agora, com o Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto livro de seu épico de sete volumes sobre o menino feiticeiro do tí­tulo, J.K. Rowling se vê como guardiã de um fenômeno popular internacional e de um mundo mé­tico que está a ponto de ser considerado Tolkienesco. E quanto mais coisas mudam e elas estão mudadas, desde o assistente de tempo integral que ela contratou recentemente para mantê-la organizada, até as negociações com Hollywood sobre o dilúvio futuro de produtos e filmes, mas elas continuam iguais. Ela ainda se esquiva para cafés em Edimburgo, Escócia, buscando solidão para escrever. “De fato, parece incrivelmente familiar”, diz Rowling, “como se eu voltasse para onde estava antes de Harry Potter [e a Pedra Filosofal]”.

Você se referiu às trevas em seus livros, e tem havido muita conversa e até mesmo preocupação sobre disso.
Você tem uma escolha quando vai introduzir um personagem muito mau. Você pode vestí-lo com muita munição, ou pode pôr um belo chapéu preto de caubói nele, e dizer, “Cara mau, atire nele”. Eu estou escrevendo sobre sombras do mal. Você tem Voldemort, um psicopata furioso, destituí­do das respostas humanas normais para o sofrimento das outras pessoas, e há pessoas assim no mundo. Entretanto você tem o Rabicho, que, por causa de sua covardia, crescerá na sombra da pessoa mais forte. É muito importante para mim quando Dumbledore diz que você tem que escolher entre o que é certo e o que é fácil. Esta é a estrutura dos próximos três livros. Todos eles terão que escolher, porque o que é fácil freqüentemente não é o que é certo.

Há uma cena no Cálice onde Cedrico, que compete contra Harry no Torneio de Tribruxo, é morto por Voldemort, e no fim Dumbledore tem que escolher entre informar os estudantes sobre este mal ou esconder tal conhecimento deles. Ele escolhe lhes contar.
A decisão de Dumbledore é 100 por cento eu. Teria sido um insulto à memória daquele menino não contar a verdade. Mas contar a verdade tem repercussões. As pessoas não estão acostumadas à verdade, particularmente de autoridades. A propósito, eu odiei matar o Cedrico, simplesmente odiei.

Há outras violências horrí­veis, também, como quando Rabicho corta o braço de Harry para pegar o sangue que devolverá Voldemort à vida. Muito perturbador.
Sim, não foi legal, eu concordo com você.

Você já pensou que “talvez eu devesse suavizar isso”?
Não. Eu sei que soa meio brutal mas não, eu não pensei. O ponto principal é: eu tenho que escrever a história que eu quero escrever. Eu nunca escrevi tendo com grupo de foco crianças de 8 anos de idade. Eu tenho que continuar contando a história do modo que eu quero contar. Eu não saboreio a idéia de crianças aos prantos, e eu não nego absolutamente que é assustador. Mas é para ser assustador! E se você não mostra quão assustador isso é, você não pode mostrar como o Harry é inacreditavelmente valente. Ele é realmente valente, e ele faz, eu acho, uma das coisas de maior bravura neste livro: Ele não pôde salvar o Cedrico, mas ele quer salvar os pais de Cedrico da dor adicional. Ele quer devolver o corpo e tratá-lo com respeito.

O salvamento do corpo de Cedrico me fez lembrar do triângulo Heitor-Patroclus-Aquiles na Iléíada.
É daí que ele veio. Aquilo realmente, realmente, realmente me tocou quando eu li, aos 19 anos. A idéia da profanação de um corpo, uma idéia muito antiga… Eu estava pensando nisso quando Harry salvou o corpo de Cedrico.

E então você vai e dizima emocionalmente os seus leitores com aquela cena onde os pais assassinados de Harry são tirados da vara de Voldemort. Eu estava aos prantos.
Eu também. Foi a primeira vez que eu chorei, escrevendo um livro do Harry Potter. Eu fiquei bem chateada.

Com o seu grupo de fãs crescendo mais, e talvez ficando até mais jovem, você sente algum senso de responsabilidade social, algum senso de responsabilidade com suas sensibilidades?
Eu não posso escrever para agradar outras pessoas. Eu não posso. Quando eu terminar o livro 7, quero poder olhar no espelho e pensar, eu fiz isso do modo que pretendia fazer. Se eu perder leitores no processo, não vou dar uma festa por isso. Mas eu me sentiria muito pior se soubesse que me permiti escrever algo diferente. Além disso, eu tenho os pais que vêm e dizem “Ele tem 6 anos e amou seu livro!” E eu sempre respondo tipo, “Bem, isso é ótimo, mas eu sei o que está vindo, e acho que 6 anos é um pouco jovem demais”. Eu sempre senti assim. Com minha filha e o Cálice de Fogo, eu estou lendo para ela. A idade de leitura dela está bem avançada, mas eu disse “eu vou ler este para você. É assustador, e eu quero estar com você, e então nós poderemos falar sobre isso”. É isso o que eu acho que os pais devem fazer.

O que sua filha [Jessica, 7] pensa sobre Harry Potter?
Eu sempre disse que eu nunca leria os livros para ela até que ela tivesse 7 anos, e eu penso que até mesmo aos 7 ainda é cedo. Mas eu quebrei as regras. Eu, na verdade, li para ela aos 6 anos. Ela começou na escola, veja bem, e as crianças estavam lhe perguntando sobre Quadribol e essas coisas. Ela não tinha a menor idéia do que era tudo aquilo e eu, então, pensei, “eu a estou excluindo dessa parte enorme da minha vida, e estou fazendo dela uma alienada”. Assim eu os li para ela, e ela se tornou completamente obcecada por Harry Potter!

Jessica têm a vantagem de saber o que vai acontecer?
Não, não, não, não, não! E crianças na escola dela vêm até mim e dizem, “A Jessica sabe o que acontece no livro 4? A Jessica sabe o tí­tulo do livro 4?” E eu continuo dizendo “Não! Não há nenhum motivo para sequestro, para levá-la para trás do galpão de bicicletas, nem para torturá-la pela informação”.

Você está transitando de uma história de sucesso repentino para vigia de um mundo mí­stico, um que está a ponto de ser traduzido em filmes e produtos. O que você sente sobre isso?
É preocupante. Eu estou nervosa. Porque eu estou lutando com unhas e dentes e as pessoas têm que acreditar nisso, porque é a verdade, eu estou lutando para manter a pureza do mundo. É com isso que eu estou envolvida no momento, enquanto tento ter certeza de que quando os produtos saí­rem com o nome de Harry Potter neles, eles realmente são produtos de Harry Potter, não alguma imitação pálida.

Você tem algum tipo de controle sobre o que a Warner Bros faz com Harry Potter?
Se eu posso evitar, de acordo com o que está em meu contrato? Não. Mas eles foram muito corteses me permitindo contribuir, e me fizeram muitas perguntas que eu nunca imaginei ter que responder.

Como é lidar com Hollywood?
A pessoa que eu estava mais nervosa para conhecer, sem dúvida, era Steve Kloves, que está escrevendo o roteiro. Eu estava realmente pronta para odiá-lo. Este era o homem que ia abater meu bebê. A primeira vez que eu o encontrei, ele disse, “sabe quem é meu personagem favorito?” E eu pensei, “Você vai dizer Rony”. É muito fácil amar o Rony, mas tão óbvio. Mas ele disse “Hermione”. Eu meio que derreti.

Há qualquer plano de vir para o EUA?
É provável que eu esteja aí­ no final deste ano. Eu amo ir aos Estados Unidos.

O que você gosta nos Estados Unidos?
Bem, o que eu gosto? Eu realmente, realmente, realmente me apaixonei por Nova Iorque. A primeira sessão de autógrafos que eu fiz, o primeiro menino que me viu na fila acenou e disse “VOCÊS DETONAM!” Eu pensei que isso era ótimo, mas eu me ouvi responder e soei tão intensamente britânica, algo como “é muito gentil da sua parte dizer isso, muito obrigada”. E teve uma mulher em L.A., uma mulher de meia-idade tipo Palm Beach, ela disse, “ESTOU FELIZ QUE VOCÊS ESTEJA RICA!” Eu lhe digo, você nunca ouviria isso na Inglaterra. Aqui, é “Muito bem”.

Traduzido por: Carol Salgueiro e Adriana Pereira em 11/03/2007
Revisado por: Patricia M. D. de Abreu em 23/04/2007 e Antônio Carlos de M. Neto em 22/03/08
Postado por Fernando Nery Filho em 29/04/2007
Entrevista original no Accio Quote aqui.