Geras, Adele. “Simplesmente loucos por Harry”. The Scotsman, 8 de julho de 1999.

Se você conhece o nome sem conhecer o trabalho (Hamlet, Édipo, O Urso Pooh, Urso Paddington, Alice, William, Noddy, Anne of Green Gables, e assim por diante), está na presença de um herói genuíno: um personagem constante que não está simplesmente contido num trabalho da imaginação, mas estende-se aos pontos de fuga culturais. O último recruta deste panteão é Harry Potter, invenção de J.K. Rowling.

Deixe de lado quaisquer idéias aristotélicas de que grandes homens cometem erros minúsculos ou fatais.

Harry é uma criança. Também é bruxo, e filho de bruxos, mas no início da saga ele vive com trouxas (não-bruxos), e que trouxas horríveis. O primeiro livro, Harry Potter e a Pedra Filosofal, mostra ele sendo levado a Hogwarts, um estabelecimento para aprendizes de bruxos, onde o currículo inclui tudo o que o jovem feiticeiro poderia desejar e onde acontece um glorioso jogo chamado Quadribol: um tipo de futebol em vassouras, com regulamentos que fazem com que as complicações da regra de impedimento pareçam, em comparação, claríssimas.

Todo herói precisa de ajudantes – pense em Dom Quixote – e Harry tem dois. Entre eles, Harry e seus amigos, Rony e Hermione, proporcionam todas as qualidades necessárias num trio dedicado (basicamente) à corrente luta do bem contra o mal. É tudo escrito com uma ótima vivacidade; é engraçado e assustador, embora não tão assustador, e capta a imaginação de todos com quem você fala, não importando a idade.

Os pais, talvez atraídos pela aparência um tanto fora de moda da arte da capa, o liam para seus filhos e o costumavam levar escondido para o trabalho. A Bloomsbury fez um favor ao criar uma edição que os adultos pudessem ler em público sem atrair a atenção imediata para o embaraçoso fato de que estão imersos num livro infantil.

O volume dois, Harry Potter e a Câmara Secreta, foi tão popular quanto o primeiro, e o terceiro, que está pautado para ser lançado neste 8 de julho, está sendo super-aclamado pelos críticos que puderam dar uma olhada nas amostras – críticos estes que, primeiro, tiveram que assinar um acordo jurando não divulgar os conteúdos antes da publicação, como se isso fosse fazer a menor diferença à extasiante recepção que o livro certamente receberá.

O que é, então, que levou a série de Harry Potter do popular ao fenomenal? O que uma escritora deve fazer para criar esta criatura incrível, o verdadeiro herói? A resposta curta é que, se soubéssemos, estaríamos criando clássicos potterianos como loucos e fazendo conferências em tempo integral com nossos contadores e diversos produtores de Hollywood. Isso, então, é a primeira coisa a ser dita: você não pode simplesmente decidir fazer mais do que sua mente consegue, ao escrever um best-seller. Os heróis se tornam heróis por várias razões.

Às vezes (Hamlet, Édipo) a obra é tão grande, tão universal, que gerações sucessivas de todos os tipos de cultura encontram algo nele.

Heróis infantis, sejam eles homens ou mulheres, são divididos em duas categorias separadas. Há aqueles que são observadores (Anne of Green Gables, ou Alice, ou Jim em A Ilha do Tesouro), e o prazer do leitor de qualquer idade é pegar emprestado os olhos daquela pessoa e ver o mundo como ela. Ela fala com o jovem leitor, e reage a ele. O outro tipo de herói é aquele que gostaríamos de ser.

Nas histórias de Richmal Comton, por exemplo, William nos permite ser tão travessos quanto quisermos em nossa imaginação sem precisar temer a punição, ou mesmo a desaprovação.

Podemos ser anarquistas por tabela.

Quando abrimos um livro de Harry Potter, podemos ver um mundo encantado através dos olhos de Harry e, por tabela, dos olhos dos bruxos, nos permitindo reorganizar tudo com um movimento de varinha mágica.

Harry é como nós: fraco, comum e tem todos os medos que a maioria de nós tem. Ele não tem, ao menos no começo do primeiro livro, amigos ou afeto: está sozinho contra todos. Muitas crianças sentem que é isso que eles são, pelo menos por um tempo, e é maravilhoso ler sobre como os outros lidam com isso. Apesar de ser comum, Harry é esperto, leal e, o melhor de tudo, corajoso, e estas são qualidades que as crianças gostariam de ter. Além disso, ele é bastante inteligente, sem ser um cê-dê-efe. É Hermione o verdadeiro cérebro do trio.

Outra coisa interessante sobre os livros é que eles estão na tradição de histórias escolares, mais especificamente em histórias escolares numa série.

Estas sempre foram populares.

Pense em Billy Bunter (outro herói); pense na série Chalet School; pense em Malory Towers; pense em Angela Brazil. O elemento série é importante. Se você gosta de alguma coisa, fica reconfortado ao saber que há mais de onde aquilo veio.

Continuidade é uma das coisas que admiradores de novelas gostam, e histórias escolares são simplesmente uma forma infantil das novelas.

O advento das escolas compreensivas levou os escritores a pararem de escrever sobre crianças ricas em internatos. Entretanto, Grange Hill foi muito popular na TV e compartilhava com outras novelas uma estrutura reconhecível e uma escalação fixa de estereótipos familiares: o bonito, o cê-dê-efe, o excêntrico, o covarde, a bonita, e assim por diante. Ajuda se a estrutura é fechada. E a narrativa funciona maravilhosamente se seus personagens estiverem presos de alguma forma e não puderem nem fugir para o grande mundo, nem fazer com que este venha até eles e interfira no microcosmo. Como resultado, prisões, hospitais e escolas têm essa vantagem, e mesmo as histórias que acontecem em lugares supostamente reais são geralmente confinadas a uma rua, praça ou casarão.

A Academia de Hogwarts é a estrutura perfeita: uma criação gótica em algum ponto entre Gormenghast e qualquer internato já existente, incluindo o que eu freqüentei por oito anos. Os professores também, sejam eles humanos ou mágicos, são uma coleção de personagens muito boa para serem ignorados por um escritor. “Você nunca esquece um bom professor”, reza o slogan, e os romancistas nunca o fazem. Suas páginas estão repletas de pessoas que lecionaram a eles quando jovens. Afinal, há pouquíssimos adultos que são observados tão intimamente pelas crianças com quem os professores entram em contato.

Harry Potter é um universo confortavelmente fechado e ele e seus amigos experimentam todos os tipos de emocionantes (e fantásticas) aventuras, para a nossa felicidade.

Acrescente a isso uma campanha publicitária absolutamente brilhante da Bloomsbury, que sabia, por exemplo, que a Sra. Rowling deveria se chamar J.K. e não Joanne, porque garotos não comprariam livros com o nome de uma autora mulher na capa. A editora percebera que tinha em mãos livros de que os garotos gostariam, e foi inteligente ao fazer isso. Foi rápida ao reagir às primeiras críticas boas nos jornais especializados através de propagandas, muitas entrevistas, e escolhas astutas de onde e como a Sra. Rowling deveria aparecer.

É verdade que os livros são bons e que o público deles é maior que muitos outros que rejeitam imediatamente metade dos leitores, porque são tidos como “femininos”. É também verdade que, na criação de um herói, ajuda ter uma máquina muito bem afiada que pode se tornar inteiramente publicitária quando necessário. O sucesso traz mais sucesso. Uma vez que você conta a todos que o filme foi vendido por uma soma de sete dígitos, isso atrai leitores curiosos, e assim por diante. É um efeito de bola de neve.

Haverá mais cinco livros de Harry Potter. Estamos prontos para segui-lo na adolescência. Todos os tipos de traçados de enredo chegarão a uma conclusão em alguns anos.

Isso quer dizer que, quando você embarca numa saga como essa, se compromete, e isso é parte da diversão. Você é um dos que estão por dentro do assunto: um fã de Harry Potter. Pode adquirir vocábulos e frases feita que meros mortais não vão reconhecer. Pode fazer alusões que são superiores à cabeça dos ignorantes. Isso aconteceu nos EUA com os livros de Tolkien, quando eles começaram a se popularizar entre os estudantes. Você pertence a um clube.

Então o que ter um herói como Harry cavalgando pelo mundo de modo colossal muda para os outros livros infantis? Um escritor infantil amigo meu (que deve permanecer não-identificado) estava me dizendo melancolicamente outro dia que “todo santo prêmio eleito por crianças irá a um livro de Harry Potter no futuro previsível”.

Isso é bastante verdade. Você também tem que ter em mente que as crianças continuam crescendo e novos leitores chegam o tempo todo, e continuam lendo Harry Potter e mais Harry Potter. Se isso faz deles leitores ávidos, como fizeram os livros de Enid Blyton na minha geração, eles devem ser aplaudidos. A esperança, no entanto, deve ser de que aqueles que mergulharem na saga busquem cada vez mais outros heróis e diferentes tipos de livro.

É possível imaginar alguém permanecendo no reino da magia para sempre, mudando discretamente de Rowling a Pratchett e Peake. Cabe aos adultos ir mais a fundo e direcionar as crianças ao resto do universo fictício, que tem muitas outras maravilhas completamente diferentes.

Adele Geras escreveu mais de 70 livros para crianças de todas as idades. Seu último romance para adolescentes foi Silent Snow, Secret Snow.

Traduzido por: Renan Lazzarin em 27/12/2008.
Revisado por: Daniel Mählmann em 15/05/2010.
Postado por: Vítor Werle em 10/01/2009.
Artigo original no Accio Quote aqui.