Cleave, Maureen. “Bruxo com as palavras”. Telegraph Magazine, 03 de julho de 1999.

O mundo de bruxos e magia de Harry Potter tem crianças e adultos sob seu feitiço. Maureen Cleave encontra sua criadora, J.K. Rowling.

Nosso herói de 11 anos, Harry, dos livros de Harry Potter, está a ponto de ir à Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts – fundada em 1.000 d.C, pública, apenas para alunos, lema da escola: Draco Dormiens Nunquam Titillandus. Aqui está uma parte de sua lista escolar: 1 chapéu pontudo simples (preto) para uso diário, 1 par de luvas protetoras (couro de dragão ou similar), 1 capa de inverno (preta com fechos prateados); 1 varinha; 1 caldeirão (estanho, tamanho padrão 2). Os alunos podem trazer uma coruja OU um gato OU um sapo. Lembremos aos pais que os alunos do primeiro ano não podem usar vassouras pessoais.

Etiquetas em tudo, é claro, e então segue a lista de leituras exigidas. Livro Padrão de Feitiços (1ª série) de Miranda Goshawk; Bebidas e Poções Mágicas de Arsênio Jigger; Mil Ervas e Fungos Mágicos de Fílida Spore.

Harry é um jovem bruxo, singularizado em seu nascimento para grandes coisas, como o profeta infante Samuel. Ele é órfão, magricela, usa óculos, tem cabelos negros e olhos verdes. Em sua testa, como a marca de Caim (para confundir as referências bíblicas), está uma cicatriz em forma de raio. Essa cicatriz é confortante; nos diz que nenhum dano pode ser feito a Harry, embora esqueçamos disso à medida que o enredo se complica. Ele é um herói adequado com escolhas morais entre o que certo e errado, o bem e o mal, a lealdade e a traição.

É difícil pensar em um sucesso editorial infantil para rivalizar com os dois livros de Harry Potter, Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997) e Harry Potter e a Câmara Secreta (1998) de J.K. Rowling, mas para alguns escritores ele pode ser muito engraçado, muito assustador ou comovente para o coração do leitor ao mesmo tempo. Eles têm ganhado quase todos os prêmios literários infantis (alguns por duas vezes) e vendido 750.000 exemplares apenas no Reino Unido.

Por uma semana gloriosa, eles alcançaram o topo da lista infantil e adulta de livros mais vendidos aqui e mesmo no New York Times. Para evitar o aborrecimento constante para os viajantes pegos lendo Pedra Filosofal no trem, uma edição com uma capa feia foi produzida tomando a 2ª posição (25.000 exemplares vendidos). Isso não ajuda muito se o seu problema é ler os livros em um local público e rir alto, o que aconteceu comigo quando cheguei à estátua de Gregório, o Ordinário e a Murta-Que-Geme, uma fantasma adolescente que assombra um banheiro interditado.

Das 16 edições estrangeiras, a grega é a que mais deixa J.K. Rowling, que fazia Literatura Clássica e Francês na Exeter, contente. “É bastante impressionante em grego”, diz.

No início, ninguém sabia quem era ela e as crianças escreviam cartas fanáticas começando com Caro Sr. ou Cara Sra. Rowling, com a mesma freqüência. Então chegou a história, quase boa demais para ser verdade, de que ela era uma mãe solteira que, para esquecer seus problemas, escrevia sobre Harry Potter no Nicolson’s Cafe em Edimburgo, porque era muito frio em seu apartamento. Sua filhinha, Jessica, dormia no carrinho ao seu lado. Ela podia escrever apenas enquanto Jessica dormia.

Agora Jessica tem cinco anos, Joanne Rowling, 33, e – tendo os direitos cinematográficos de Harry Potter sido vendidos para a Warner por uma ‘substancial’ quantia de sete dígitos – moram numa velha casa bonita de três quartos com um jardim. Jessica vai à escola e Rowling continua a escrever livros em cafés. Ela estava lá, com papéis sobre a mesa, mais deles num saco plástico no chão, criando palavras-cruzadas para o jornal bruxo O Profeta Diário.

Fomos direto a Harry Potter, que é tão real para ela como se estivesse sentado entre nós. Imersa no mundo de Harry, ela esquece de comer. (A comida em Hogwarts [ilegível] … magicamente reposta quando consumida.)

“Acho”, disse, “que é uma fantasia comum a de que seus pais não são seus pais – é uma coisa assustadora, mas liberadora. Então o órfão é uma imagem perene na literatura infantil. Se você é órfão, não pode desapontá-los e não tem que levar seus sentimentos em consideração – você é totalmente livre de tudo a não ser da sua própria consciência”. E o fato de que você está passando por isso sozinho atrai a simpatia do leitor.

Os pais de Harry, Tiago e Lílian, foram mortos pelo malvado Voldemort, o Lúcifer do mundo mágico. Ele tentou, mas não conseguiu, matar Harry; a pior coisa que conseguiu fazer foi deixar uma cicatriz em forma de raio. Mas ele volta nos livros, então certamente tentará de novo.

Há uma explicação a ser feita aqui. Pessoas comuns como você, eu e J.K. Rowling são conhecidas como trouxas por bruxos e bruxas. É bastante possível que pais trouxas dêem a luz a um bruxo ou bruxa, ou vice-versa, caso no qual o herdeiro é chamado de aborto. Para mantê-lo a salvo, Harry, enquanto bebê, é levado para viver com seus tios trouxas Petúnia e Válter Dursley, que moram no número 4 da Rua dos Alfeneiros no mundo trouxa. Tio Válter tem uma companhia de brocas, um bigodão que retém pedaços de ovo frito e cospe enquanto fala. O dedo mindinho de tia Petúnia levanta-se quando ela toma café.

Ela chama seu Duda de anjinho e o dá tanta comida que seu traseiro ultrapassa os extremos da cadeira. Eles são esplendidamente asquerosos para Harry, fazendo-o viver num armário sob as escadas, então os odiamos com gosto – embora os trechos dos Dursley estejam entre os melhores.

Os amigos de Harry em Hogwarts são Rony Weasley e Hermione Granger. Hermione é uma cê-dê-efe sabe-tudo e mandona, sempre a primeira a erguer a mão nas aulas, enquanto se senta ansiosa na ponta da cadeira. Seu tom é freqüentemente descrito como choroso ou esganiçado, mas ela é ótima e sempre salva o dia!

“Hermione”, disse Rowling, “é uma caricatura minha com uma grande insegurança quanto a ser correta e uma compulsão por conseguir o que quer, o que é uma forma bastante feminina de se superar. Melhorei muito quando descobri a maquiagem aos 16 anos e percebi que a estrelinha no dever de casa não era tudo, embora ainda desse muito duro.” Ela tem uma aparência muito boa agora com cabelos ruivos e olhos intensamente azuis. “Estou preocupada com a Hermione nas versões cinematográficas, porque eles podem fazer dela uma garota bonita com óculos e que diga, ‘Ah, não, sou realmente correta’”.

O pai de Rowling era gerente da Rolls-Royce em Bristol, fazendo motores de aeronaves. “A família dele era da classe trabalhista. Ele foi muito bem, se ergueu por si só através da escola noturna. Ele conheceu minha mãe num trem vindo da King’s Cross e foi num trem que ele a pediu em casamento. Ela era meio francesa, meio escocesa, muito bonita, muito francesa, com cabelos negros e olhos castanhos, herdados por minha irmã Di. Eu ganhei a parte escocesa do coquetel. Ela morreu de esclerose múltipla quando eu tinha 25 anos e ela, 45”.

No primeiro livro, Harry está fora da cama quando encontra o Espelho de Ojesed (Desejo escrito de trás para frente). Ele não vê apenas a si mesmo, mas a seus pais mortos acenando para ele, sua mãe chorando, porém sorrindo ao mesmo tempo. “Harry retribuiu o olhar carente, as mãos comprimindo o espelho como se esperasse entrar por dentro dele e alcançá-los. Sentiu uma dor muito forte no peito, em que se misturavam a alegria e uma terrível tristeza”.

Apenas ao reler isso foi que Rowling percebeu seu significado. “Fui surpreendida ao ver quanto disso veio da morte de minha mãe. É o que eu veria se olhasse o espelho de Ojesed: minha mãe morta vivendo na minha frente, mesmo que por cinco minutos. Ela lia muito e, mais que toda minha família, ficaria orgulhosa pelo que aconteceu a mim, com tanto orgulho que é doloroso pensar nisso”.

Rowling sempre escreveu – romances inacabados – sempre em segredo. Depois da Exeter, ela trabalhou na Anistia Internacional e foi aí que Harry tomou forma. Ela estava num trem de King’s Cross que parou por várias horas. Ela não tinha nem caneta nem lápis. “Estava olhando pela janela e o vi claramente: pequeno, magricela e com cabelos negros. Sabia que era um bruxo. Então pensei, ele deve ir a uma escola mágica. Não acredito em nada disso – astrologia, alquimia, duendes, trasgos, elfos, mandrágoras, fênix, animagos, dragões, basiliscos – mas é um mundo pitoresco. Existe uma poesia nisso e sempre achei divertido”.

Na hora em que o trem chegou ao seu destino, ela já sabia muito sobre Harry, sobre Pirraça, o poltergeist que entope com chicles os buracos das fechaduras, sobre os quadros que deixam suas molduras e visitam uns aos outros quando entediados, e sobre Wendelin, a Esquisita que gostava de nada menos que ser queimada na fogueira. Ela, então, começou a escrever.

Foi aí que a sua vida deu várias reviravoltas. Ela foi a Portugal, onde lecionou, se casou com um jornalista português e teve Jessica, batizada em homenagem a Jessica Mitford, que admirava muito. Ela logo se divorciou e foi morar perto de sua irmã em Edimburgo. Lá se seguiram três difíceis anos com a companhia de Jessica e Harry. “Eu gostava de pensar sobre Harry – era como pensar sobre um amigo”.

“Cheguei à Grã-Bretanha uma semana antes de John Major fazer seu discurso sobre os pais solteiros estarem na raiz dos problemas da sociedade. Não tinha nenhum dinheiro, nenhum objetivo em mente. Costumava me preocupar com que o pé de Jessica crescesse muito antes que eu pudesse comprar outro par de sapatos. Destrói a alma não ter dinheiro; você perde toda a auto-estima. Adorava ser convidada para uma xícara de café, ter um adulto para conversar”. Ela sofreu brevemente com uma forte depressão. O terceiro livro, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, contém os dementadores, as criaturas mais assustadoras que destróem cada memória feliz que você já teve e cujo beijo suga sua alma. “Eles representam a frieza e a terribilidade da depressão clínica. Qualquer um que já a teve, sabe o sentimento do vazio. Você não consegue imaginar sem tê-lo sentido”.

“Mas teve uma coisa boa nesses três anos – você descobre quem são seus amigos. É muito bom você continuar criteriosa quando começa a ver seu rosto nos jornais – algo que nunca esperei ou quis. Achei toda a publicidade bastante chocante. E você se lembra dos amigos das horas difíceis, da época em que não era nenhuma glória conhecer você. Nos livros, a grande insistência na lealdade e bravura vem de mim”. O personagem de Rony é baseado em seu grande amigo, Sean.

Ela terminou o primeiro Harry Potter e foi a uma biblioteca procurar o nome de um agente no Anuário dos Escritores & Artistas e mandou alguns capítulos para Christopher Little. Ele respondeu de uma vez, dizendo que ficaria encantado de ler o manuscrito numa base exclusiva. “Foi a melhor carta da minha vida, incluindo as cartas de amor. Eu a li oito vezes”. As editoras Penguin, HarperCollins e Orion rejeitaram o livro, uma delas esquecendo de devolvê-lo por seis meses. “Meus nervos estavam à flor da pele. Então uma noite Christopher me ligou e disse, ‘temos um negócio com a Bloomsbury.’ Não consigo descrever para você – soa tão piegas – mas apenas com exceção de ter Jessica entregue a mim logo depois que ela nasceu, foi a minha mais pura e límpida alegria. Seria um livro de verdade e teria meu nome ele. Nada, desde então, chegou perto disso”.

Ela não tenta imaginar o que as crianças vão achar engraçado, e sim escreve o que ela própria considera como tal. “É o meu senso de humor. Ao mesmo tempo, não há nada mais pouco atrativo que adultos que não crescem. Eu gosto de adultos. Eu [ilegível] Peter Pan, Kenneth Grahame, CS Lewis, AA Milne – em todos eles existe uma nostalgia da infância. É uma grande divisão entre homens e mulheres; os homens voltam o relógio. Mas eu me lembro de como era ser jovem – vividamente”.

Ano passado, no Festival do Livro de Edimburgo, ela autografou livros para 400 pessoas, muitas das quais levaram vários exemplares. Finalmente, uma garota de 10 anos furiosa, chegou ao início da fila. “Ela disse, ‘Não queria que houvesse tanta gente aqui. Esse é o meu livro. Apenas queria que fôssemos você e eu.’ Me identifiquei totalmente com isso”.

Os livros se vendem – tudo o que ela tem que fazer é escrevê-los – e ela acha que o jogo de celebridade não vale a pena. “É bastante divertido no começo, mas fica enjoativo, como algodão-doce”. Pouquíssimas pessoas sabem onde ele mora, ela odeia tirar fotos. É claro que sua vida mudou. Ela tem que se conter para não comprar muitos presentes para Jessica, embora quando encontra um vestido amável por uma quantia de três dígitos – “não três dígitos altos” – vai à loja cinco vezes antes de pagá-lo.

Ela escreve um livro por ano. Serão sete no total, levando Harry à idade de 17 quando deixar Hogwarts, e depois disso, nada mais. Cada livro foi planejado, cada personagem, mapeado desde o início. Ela nunca faria como Dickens ou Hardy. Ela pode dizer a você a data de nascimento de cada membro da turma de Harry, o quanto eles são mágicos, e se seus pais são bruxos ou trouxas. Eles crescerão, transformando-se em adolescentes plausíveis, apaixonando-se e assim por diante.

As histórias estão cada vez mais obscuras, assustadoras. A notícia é de que haverá uma morte no volume quatro. “Eu odiei escrevê-la. Não gosto de pensar nas crianças em lágrimas, mas se você vai escrever sobre o mal, sobre uma pessoa que é um psicopata, mágico ou não, com uma sede insaciável de poder, você pode fazer isso de duas formas: fazer dele um vilão de pantomima com muita fumaça e raios e ninguém se machuca; ou partir para a realidade psicológica. É apenas matando alguém com quem o leitor realmente se importa que você saberá o quanto é mal extinguir a vida humana”. Os jovens leitores têm medo de que Rony se vá.

“Muito, muito poucas pessoas que conheço tiveram uma infância sem nuvens. As crianças estão atentas; elas sabem que a vida não é tão doce e rosada como Os Waltons nos faz acreditar. [ilegível] pais violentos, abuso, e crianças [ilegível] informação. Mas elas podem vir da [ilegível] periferia – e sei disso, porque lecionei a elas – e ainda ter um senso de justiça. ‘Isso não é justo’ é um conceito que está em suas cabeças, mesmo que nem sempre ajam assim, mesmo que o instinto de multidão ultrapasse isso. Minha filha tem um senso claramente definido do certo e errado – ela, às vezes, me corrige”.

Uma vez que você aceita que está num mundo encantado, não há fantasia nos livros de Harry Potter; eles estão embasados por uma forte lógica. Rowling odeia a fantasia. Hogwarts é uma sociedade fechada e ordenada com aulas regulares, punições e recompensas. Os alunos prestam seus N.O.M.s (Níveis Ordinários em Magia) e N.I.E.M.s (Níveis Incrivelmente Exaustivos em Magia) e devem passar.

Ela tem uma grande biblioteca de trabalho escondida, e é difícil tirá-la de sua magia. Ela ficou contente ao ser questionada por um garoto sobre a diferença de Feitiços e Transfiguração. “Um garoto muito brilhante. Vejo-as como uma transição, como a bioquímica. A Transfiguração é mudar totalmente a estrutura molecular de algo e transformá-lo em algo completamente diferente. Se você lança um feitiço em algo, adiciona propriedades que ele não tinha antes. Por exemplo, ele ainda é um bule, mas agora pode voar ou cantar”.

O que você faz se suspeitar de que seu filho seja um bruxo ou bruxa? “Pais ansiosos não devem de forma alguma desencorajar seus filhos nem um pouco, pois podem descobrir que seus poderes se viraram involuntariamente contra eles. De qualquer forma, é impossível ‘sair’ da magia. Um mês antes do 11º aniversário de seu filho, se você morar no Reino Unido ou Irlanda, receberá uma carta entregue por uma coruja dizendo que seu filho deve ir a Hogwarts. Neste ponto, você aceita o inevitável”.

E ele pode trazer coisas úteis em sua mala escolar: um bisbilhoscópio de bolso, por exemplo, que acende e gira na presença de alguém suspeito, ou alguns fios dentais de menta, ou um kit para cultivar capixingui, ou – e estou morrendo de vontade de ler – um exemplar de Do ovo ao Inferno, Guia do Guardador de Dragões.

A propósito, o lema da Escola de Hogwarts é, traduzido: Nunca Cutuque um Dragão Adormecido.

Traduzido por: Renan Lazzarin em 26/12/2008.
Revisão por: Daniel Mählmann em 12 de maio de 2010.
Postado por: Vítor Werle em 10/01/2009.
Entrevista original no Accio Quote aqui.